FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Assim trabalha a Humanidade
Capitalismo x socialismo

Temos aqui três exemplos das diferenças de abordagem do trabalho em contextos de produção capitalista e socialista. O casal Straub-Huillet elabora uma reflexão a respeito das lutas populares no Egito em contraste com a aparente passividade dos operários no fim de turno de uma fábrica do Cairo. Por sua vez, Sophie Bruneau recolhe relatos de trabalhadores e trabalhadoras belgas sobre sonhos relacionados a suas ocupações. Já uma comédia soviética de 1965 celebra o empenho dos operários de uma usina siderúrgica no esforço pelo aumento da produção e o sucesso econômico do país.
Jean-Marie Straub e Danielle Huillet se reportaram ao filme fundador dos Lumière com um longo plano de dez minutos diante dos portões de uma fábrica do Cairo em Cedo Demais, Tarde Demais (Trop Tôt, Trop Tard), longa documental de 1981. O filme se constitui de uma ruminação sobre a condição das populações pobres da França no século XVIII e do Egito no século XX.
No primeiro dos dois blocos, a voz over de Danielle Huillet lê trechos de uma carta de Friedrich Engels a Karl Kautsky de 1889 e do estudo de N. Kareiev sobre os camponeses pauperizados da França pré-revolucionária. No relato, sucedem-se os números espantosos de indigentes em várias cidades e vilarejos da França no século XVIII, enquanto as imagens mostram trechos urbanos e rurais despovoados em lentas panorâmicas circulares.
O segundo bloco repete o procedimento em paisagens egípcias. As vozes over de Baghat el Sadi e Gérard Sanman leem excertos do livro Lutas de Classe no Egito, de Mahmud Hussein (1969), que contesta a noção de que os egípcios seriam tolerantes à opressão. O texto enumera revoltas camponesas e operárias contra o governo local e o domínio britânico, todas massacradas e sucedidas por alguma nova ordem burguesa.
A cena da saída da fábrica é uma das mais longas num filme de tomadas longas. Diante da câmera fixa, desfila uma massa colorida e ruidosa de trabalhadores. Todos homens, muitos vestidos com a jalaba egípcia, à exceção de uma única mulher, que cruza a imagem em roupas ocidentais destoantes aos 4’50” do clipe abaixo. A quantidade de ciclistas é considerável. Ressalte-se a atenção despertada pela equipe e o aparato de filmagem, semelhante àquela demonstrada pelos operários 80 anos antes, na virada do século.
A aparente passividade desses trabalhadores, assim como a mansidão das cenas rurais, contrasta com o áudio sobre as inúmeras sublevações populares. Cria-se, assim, um vácuo de ambiguidade que põe em dúvida tanto o som quanto a imagem. Elisabeth Boyer, no ensaio La Figure Ouvrière, especula que esses trabalhadores seriam filhos e netos dos que participaram das grandes lutas do passado. “Eles devem muitas vezes ter saído da fábrica dessa maneira aparentemente banal. No fim das contas, desses operários nada conhecemos além da realidade de sua presença na tela, sem significação”. Já Mateus Araújo, em seu ensaio Straub, Huillet e o ensaísmo dos outros, sustenta que “guardadas as devidas diferenças, autores comunistas criticam nos dois blocos (do filme) os limites de revoluções burguesas, que teriam no fim das contas traído as revoltas e as aspirações populares, que o filme mantém no horizonte e com cujo espírito parece se solidarizar.”
Em 1966, a jornalista Charlotte Berardt publicou o livro Sonhos no Terceiro Reich, onde descrevia sonhos coletados de alemães entre 1933 e 1939. Esse trabalho inspirou a diretora belga Sophie Bruneau em Rêver sous le Capitalisme (Sonhar sob o capitalismo), realizado em 2018. Ela ouviu os relatos de vários trabalhadores e trabalhadoras de corporações e serviços públicos belgas sobre sonhos relacionados ao seu ofício.
Na maior parte, pesadelos, alguns kafkianos. Ser perseguido pelo tick-tick da caixa registradora, ver a janela de seu escritório ser murada com tijolos ou o cadáver de um ex-colega aparecer sobre a sua mesa de jantar, tomar a decisão de matar o chefe... Alguns personagens arriscam interpretações de seus sonhos, mas a matéria seria mais afeita a especialistas em psicanálise. Fica clara, porém, a relação dos pesadelos com o estresse, o burnout, o despotismo de superiores, as sensações de aprisionamento, controle, incapacidade de cumprir metas, exploração, etc.
A sequência de saída dos funcionários de um edifício corporativo em noite chuvosa é um dos muitos planos de diferentes espaços de trabalho, sempre distanciados e não oralizados, com que Sophie Bruneau separa os blocos de fala ou sobre eles aplica os relatos em voz over. A dispersão silenciosa das pessoas ao descer as escadas é um momento em que deixam de ser força de trabalho sob a égide das empresas e retomam sua individualidade. Caminham, talvez, em direção a mais uma noite de sonhos estranhos.
O final de um turno de trabalho pesado podia ser um momento de exaltação patriótica no cinema soviético. É o caso de Está na Hora, Adiante! (Vremya, vperyod!), comédia agitada e atlética dirigida pelo casal Sofiya Milkina e Mikhail Schweitzer em 1965 e dedicada à comemoração dos 50 anos da Revolução de Outubro.
A ação se passa nos anos 1930, quando o regime stalinista estimulava o aumento da produção por meio da competição entre unidades de trabalho. A produção de aço era fator determinante para a ascensão econômica do país. Desafiados por um recorde de produtividade em unidade vizinha, os operários engajados na construção da usina siderúrgica Magnitogorsk, nos Montes Urais, se desdobram para superá-lo. Contra os preguiçosos e os sabotadores, os líderes do esforço conclamam à “disciplina à moda bolchevique”. Apesar de alguma sátira às estruturas hierárquicas, o tom é de entusiasmo pelo resultado do empenho de todos, dia e noite.
Segundo o especialista João Lanari Bo, a realidade era bem outra: os trabalhadores viviam em acampamentos cercados de arame farpado. Milhares de camponeses e de condenados não políticos foram transferidos à força para o local a fim de substituir os voluntários que desistiam devido às duríssimas condições de trabalho. Cerca de 10 mil pessoas morreram de frio, fome ou doenças durante os quatro anos de construção da usina.
No entanto, uma cena de saída do canteiro de obras mostra sinais de alegria e contentamento, principalmente da parte das operárias que passam em carroças por trás de dois personagens entretidos numa conversa em primeiro plano. Eles falam sobre a troca de turno e a intenção de bater o recorde na produção.