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Cinema industrial

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O filme inaugural dos irmãos Lumière pode ser considerado o precursor de um gênero que floresceria nas primeiras décadas do século XX na medida em que o cinema passava a ser compreendido como ferramenta de promoção, treinamento e organização empresarial.

O cinema industrial se caracteriza por ser produzido por governos ou patrocinado por empresas. Seu público-alvo é constituído basicamente por clientes potenciais, consumidores, público de feiras industriais e pelos empregados quando se trata de filmes de treinamento.

Dependendo do contexto em que eram exibidos, os filmes industriais podiam ser propaganda, filmes culturais ou educacionais, e até mesmo filmes “locais”. As cenas de saída da fábrica, por exemplo, muito comuns no gênero até a década de 1940, cumpriam duas diferentes funções: para um público geral, demonstravam o poder econômico da corporação; para os seus empregados e os habitantes locais, eram espelhos de autorreconhecimento, diversão comunitária e ferramenta de identificação dos trabalhadores com a empresa. Em muitos casos, eram usados por escolas e associações como substitutos cinematográficos da visita presencial à fábrica.     

 

Trata-se, portanto, de uma produção não comercial em termos de exibição, mas de uso predominantemente profissional ou educacional. Isso levou a que os estudos de cinema colocassem o cinema industrial à margem das valorizações autorais. O que não impediu que certos filmes industriais, por seu valor estético e de inovação formal, tenham se tornado clássicos do cinema tout court.

 

No seu auge, entre os anos 1930 e 1960, o cinema industrial empregou milhares de pessoas e envolveu gigantes da indústria como Shell, AT&T, Renault, Peugeot, Westinghouse, Fiat e, no Brasil, Votorantin, Belgo-Mineira e inúmeras fábricas, sobretudo do ramo têxtil. Talentos como Buster Keaton, Silvino Santos, John Grierson, Alberto Cavalcanti e Alain Resnais se engajaram em sua criação. O próprio termo “documentário” foi adotado por Grierson como forma de credenciar seus projetos na busca de patrocínio junto a empresas e estatais britânicas.    

 

Também chamados por historiadores anglófilos de utility films (filmes utilitários), os filmes industriais do século XX se prestaram não só às relações públicas de empresas, mas também à promoção do setor industrial de nações no rumo do progresso. Na Itália do pós-II Guerra, por exemplo, serviram para se contrapor à imagem de miséria e desemprego que ficou associada ao país. Em países pobres, foram usados para minorar a reputação de atraso e subdesenvolvimento. Imagens em movimento mostravam máquinas em movimento e países em desenvolvimento.  

 

No cinema industrial, os trabalhadores filmados dentro das fábricas são protagonistas sóbrios que executam suas tarefas conscientes de que suas ações e performances estão sendo registradas para exibição pública. O filme industrial é normalmente composto de gente disciplinada e concentrada no trabalho de produzir coisas úteis. Como destacou Martin Loiperdinger no ensaio Early Industrial Moving Pictures in Germany (no livro Films that Work: Industrial Film and the Productivity of Media), os operários nesses filmes “não bocejam, não suam, riem ou brincam; não xingam, não fazem pausas, nem comem ou bebem”. 

 

Em contrapartida, as sequências de fim de turno, quando a força de trabalho deixa as instalações da fábrica e dá lugar aos indivíduos “libertos” de seu papel institucional, o comportamento assume formas mais descontraídas. Os corpos adquirem outra mobilidade, os sorrisos se abrem, os chistes mútuos e até certa dose de violência ganham espaço enquanto as pessoas se dispersam no rumo de suas casas ou dos recintos de repasto, lazer e descanso. São como escolares em hora de recreio.              

 

Espetáculo e publicidade

 

Uma das primeiras séries de filmes industriais a ganhar grande fama foi feita pela American Mutoscope & Biograph para a Westinghouse Electric and Manufacturing Company.  À frente dos trabalhos estava Johann Gottlob Wilhelm Bitzer. Conhecido como G.W.Bitzer ou Billy Bitzer, foi o maior cinegrafista dos EUA no seu tempo, tendo trabalhado com D.W. Griffith. A série da Westinghouse foi amplamente exibida pela empresa na Feira Mundial de St. Louis, em 1904, constituindo uma notável exploração publicitária do cinema industrial.

 

Um desses filmes ficou especialmente famoso por duas razões. Primeiro, pela grande quantidade de pessoas que passam pelo portão da Westinghouse, em Pittsburgh. Na época, essa unidade da empresa contava com cerca de 9.000 empregados. A filmagem chegou a ser chamada de “a saída de fábrica americana”, em referência ao filme dos Lumière, mas numa escala mais grandiosa e espetacular. A segunda razão é a aceleração das imagens no início do registro, uma verdadeira debandada. A cena gera um humor semelhante ao das comédias de Mack Sennett. 

Se o primeiro filme dos Lumière, assim como muitos factory gate films iniciais, não exibia a marca da empresa, posteriormente ficou mais explícito o agenciamento da imagem dos trabalhadores para a promoção da respectiva indústria. Tome-se o exemplo de um pequeno trecho de filme comemorativo dos 50 anos da Firestone, em 1950, cuja montagem associa diretamente a saída do pessoal à marca da empresa e à efeméride celebrada.

 

Já um filme publicitário da Philco nos EUA em 1954 apresenta cenas de funcionárias saindo sorridentes de uma instalação da empresa, acenando para a câmera, enquanto a locução exalta seu propósito de “agradar a você, atender aos seus desejos e necessidades”. E continua: “Elas estão sempre lá com um sorriso amigável para lhe prestar o melhor serviço possível”.

 

Em outro exemplar dos anos 1950, as operárias da fábrica de aparelhos auditivos Sonotone são tomadas como modelo de atuação das mulheres trabalhadoras na indústria estadunidense. Ao fim de um dia de trabalho, elas se preparam para voltar para casa, retocam a maquiagem, batem o ponto. O locutor identifica uma delas e assinala que a batida de 17 horas não é o fim do seu dia, mas apenas o momento que separa suas “business hours” de suas “personal hours”. Como tantas outras, ela tem “duas vidas”. É apresentada como “uma trabalhadora habilidosa e contente com seu emprego”. Mas quando sai da fábrica, está entrando numa área de sua vida em que as relações são “mais próximas e pessoais”.

A Fiat produziu, em 1957, um filme exemplar de todas as características do cinema industrial-promocional. Trattori Argentini abordava a fábrica Concord de tratores Fiat e Someca, instalada em 1953 na província argentina de Córdoba com o intuito de “contribuir para a mecanização do campo argentino”. O filme de 19 minutos mostra os diversos departamentos da fábrica e detalha o processo de fabricação, desde os testes químicos das matérias-primas até a verificação dos veículos prontos. Junto à espetacularização das máquinas com música épica e muitos números, adjetivos e metáforas, louvam-se também os operários: “A Concord se orgulha de seus homens, dotados de espírito e capacidade excepcionais”.   

A sequência final elabora uma exaltação da mão de obra a partir da saída dos operários ao fim de um dia de trabalho. O texto da narração exemplifica o tratamento pomposo conferido a todo o filme:

 

“A jornada terminou. (...) Fábrica e lar. Trabalho e família. O caminho de volta é uma pausa de meditação para esses homens que trabalham para construir condições de vida social avançada para todos, para o país. Na sombra da noite, enquanto as máquinas e os motores dormem, os trabalhadores que se distanciam da fábrica trazem nos olhos, na alma, o sinal luminoso do seu trabalho: CONCORD". 

Loiperdinger
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