FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Dramaturgia da fábrica
Fábrica e prisão: afinidades

Em Cárcere e fábrica - As origens do sistema penitenciário (séculos XVI e XIX), o sociólogo Dario Melossi e o penalista Massimo Pavarini refletem sobre os paralelos entre as duas instituições: “a fábrica é para o operário como o cárcere”, uma vez que em ambos se perde a liberdade. Por outro lado, “para o presidiário, o cárcere é como uma fábrica”, já que as bases são o trabalho e a disciplina. Esse paralelo pode ser ilustrado por cenas de filmes em que as duas realidades são aproximadas, ou simplesmente as grades dos portões de fábrica remetem às grades de um presídio.
O clássico A Nós a Liberdade (A Nous la Liberté), de René Clair (1931) explicita tanto quanto possível a relação entre fábrica e prisão. O filme se abre no presídio onde se encontram os dois protagonistas, Émile (Henri Marchand) e Louis (Raymond Cordy). A cena os mostra trabalhando numa linha de montagem de cavalinhos de madeira. Soa a sirene da refeição e eles se dirigem marcialmente ao refeitório, onde a formação da linha de montagem se repete. Em seguida, marcham em direção a suas celas.
A comédia musical prosseguirá com a fuga de Louis, que vai progredir de vendedor a dono de uma fábrica de fonógrafos. Os operários são submetidos à opressão fordista, da mesma forma que se via na penitenciária. Nesse aspecto, o filme antecipa em cinco anos a sátira de Charles Chaplin em Tempos Modernos. René Clair combina um entrecho romântico com o reencontro problemático dos dois amigos e uma abordagem zombeteira da automação da indústria, na qual os operários deixam as máquinas trabalhando e vão pescar, praticar esportes e dançar. A mecanização do trabalho surge aí como libertação, quando a fábrica deixaria de ser presídio.
Paralelo semelhante entre a prisão e a fábrica aparece no documentário São Paulo, Sinfonia da Metrópole (Adalberto Kemeny e Rudolf Lustig, 1929). Nesse filme, não temos uma saída de fábrica, mas a entrada de operários para um turno de trabalho. Outra cena, porém, apresenta a Penitenciária do Estado, denominada Instituto de Regeneração, em cujo lema da fachada se lê: “Aqui o trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta commettida e reconduzem o homem à communhão social”. Os detentos trabalham em jardinagem e oficinas de sapataria e de fabricação de vassouras. No livro A Century of Brazilian Documentary Film, Darlene J. Sadlier cita a prisão nesse filme como “microcosmo de uma sociedade ordeira e autodisciplinada, que produz mercadorias e gera dinheiro”.
Perdidos na Tormenta (The Search,1948), de Fred Zinnemann, tem uma cena memorável de saída de fábrica, principalmente por se originar de um equívoco do personagem central. Tido como o primeiro filme feito pelos EUA na Europa após o fim da II Guerra Mundial, narra o drama das muitas crianças que sobreviveram órfãs nos campos de concentração e ficaram vagando por uma Alemanha miserável. Karel (Ivan Jandl), menino tcheco traumatizado pela separação da mãe em Auschwitz, encontra-se num abrigo da ocupação estadunidense em cidade alemã não identificada.
Durante uma transferência para outro local, atemorizadas pela ideia de estarem sendo levadas para mais um campo de concentração, as crianças fogem da ambulância da Cruz Vermelha. Karel é encontrado pelo soldado Steve (Montgomery Clift), que passa a cuidar dele. Enquanto isso, a mãe do menino (a cantora lírica Jarmila Novotná) erra pelo país à procura do filho.
Karel tem lembranças vagas de Auschwitz e, ao ver uma fábrica cercada por telas, pensa estar diante do campo. Um dia ele se posta à saída das operárias na esperança de encontrar a mãe. Aqui, mais uma vez, se estabelece o paralelo entre a fábrica e a prisão.
Sete anos depois da II Guerra Mundial, Berlim está dividida. No lado ocidental, quatro mulheres se deixam seduzir por Conny (Hanns Groth), um dandy mulherengo e mau caráter. Elas são uma baronesa chique mas cheia de dívidas, uma estudante de direito em vias de se tornar juíza, uma pobre costureira e a personagem principal, a operária Renate (Sonja Sutter). Decidida a qualquer coisa para assegurar que Conny fique com ela, Renate rouba dinheiro da mãe para comprar um vestido caro e, flagrada pelo irmão pequeno, mata-o por sufocamento.
Destinos de Mulheres (Frauenschicksale) é uma produção dos estúdios DEFA, da Alemanha Oriental, de 1952. Em pleno realismo socialista, a intenção do diretor Slatan Dudow e seus corroteiristas foi louvar o projeto de uma “Nova Alemanha”, com o país ainda traumatizado pela guerra e os campos de concentração. O lado ocidental, ocupado pelos aliados, é visto como um território em transição espiritual. Já Berlim Oriental é retratada como vanguarda da conscientização política e do empoderamento das mulheres. Para lá se muda a costureirinha depois de ficar grávida e ser desprezada por Conny.
Quanto a Renate, é sentenciada a dois anos e meio de prisão. A juíza, agora formada e já tendo mandado Conny às favas, consegue que Renate trabalhe numa fábrica estatal enquanto cumpre sua pena. Lá ela conhecerá um operário digno, em tudo oposto a Conny, que a ajudará a redimir-se e estará com ela na cena que encerra o filme, uma vibrante celebração do Festival da Juventude em Berlim Oriental. O melodrama se contorce para fazer germinar a figura do herói positivo.
O filme exalta o trabalho como motor de redenção do país. A chegada da presidiária Renate à fábrica estatal é enaltecida com uma música de Hans Eisler e letra de Bertolt Brecht: “O trabalho não é uma maldição / Para quem não é escravizado / É leite e livros, sapatos e pão / É como o vento e as ondas para o marinheiro em seu navio / O trabalho é uma dádiva para os homens”.
Há três cenas em que Renate sai de alguma fábrica. Na primeira, as colegas lhe contam da traição de Conny com a baronesa, primeiro passo para a danação da moça. O fim do expediente aparece aí mais uma vez como o momento de retomada dos assuntos da vida privada. Na segunda, já comutando entre a fábrica e o presídio, Renate resiste à corte do operário, ainda devastada pela desilusão amorosa de antes. Na terceira saída, filmada da mesma forma que a anterior, a situação se inverte, e é ela quem espera ver o rapaz, em vão. As duas últimas saídas demarcam a mudança de atitude de Renate perante a possibilidade de um novo amor.
Além disso, Destinos de Mulheres aproxima as ideias de fábrica e prisão, inclusive pelo tratamento das grades na terceira saída de Renate.
Na França, em 1968, o documentário La CGT en Mai 68 contém três tomadas panorâmicas de operários grevistas que ocupavam uma fábrica. Eles são filmados através das grades; acenam os braços e os punhos através das barras dos portões fechados. Aparecem como presidiários por sua livre vontade.
Harun Farocki destaca, em Trabalhadores Saem da Fábrica, a cena de O Desertor (Dezertir, Pudovkin, 1933) em que homens desempregados salivam um emprego diante do portão de um estaleiro alemão em greve. Lá dentro, operários fura-greves estão carregando fardos pesados. Um deles desaba, exaurido. Os inativos acorrem à entrada na esperança de poder substituí-lo. Farocki compara seus rostos ansiosos e esfomeados com os de prisioneiros de um campo de concentração. Enquanto isso, os grevistas assistem à cena com os rostos colados às grades do portão. Forma-se, então, uma visão paradoxal do movimento trabalhista. Do lado de fora, entre os desempregados, a miséria faz da liberdade uma prisão. Dentro do estaleiro, o trabalho pago seria a liberdade desejada. “Com tanta gente incapaz de encontrar emprego ou um lugar numa sociedade baseada no trabalho, como será possível uma revolução social?”, pergunta-se Farocki.
Fábrica, prisão, cinema
Levando mais adiante essa analogia entre fábrica fordista e prisão, podemos incluir também o cinema tradicional como mais um local de confinamento e controle temporal. É o que nos lembra Hito Steyerl em O Museu é uma Fábrica?: “Imaginem: trabalhadores saem da fábrica. Espectadores saem do cinema. São ambos uma massa semelhante, disciplinada e controlada num tempo editado, e lançada para fora em intervalos regulares. Como a fábrica tradicional prende seus trabalhadores, o cinema prende o espectador. Ambos são espaços disciplinares.”