FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Saída para a luta
França: propaganda e cine-ativismo

O teórico e cineasta francês Jean-Louis Comolli definiu o cinema militante como “cinema das emoções políticas”. Na França, o Maio de 1968 foi um marco nas lutas trabalhistas e deu margem ao surgimento de cineastas, grupos e cooperativas dedicados ao cine-ativismo e à cobertura das ações da C.G.T., a maior central sindical do país. Mas o cinema da resistência ao patronato nasceu na França bem antes disso e se estendeu pelas emoções políticas do pós-68.
Em 1936 a França vivia uma campanha eleitoral encarniçada. As principais forças de esquerda, coligadas no Front Populaire, disputavam o poder visando alijar as ameaças fascistas que vinham da Alemanha hitlerista e da Itália de Mussolini. O Partido Comunista Francês encomendou a Jean Renoir a direção de um filme coletivo de propaganda contra o fascismo e o capitalismo. A equipe envolvia nomes como Henri Cartier-Bresson, Jacques Becker, os diretores de fotografia Henri Alekan e Claude Renoir, os atores Jean Dasté e Gaston Modot, entre muitos outros. Além, é claro, de diversos dirigentes do PCF que levavam a palavra oficial do partido e de cantores da Chorale Populaire de Paris.
A Vida é Nossa (La Vie est à Nous), com cerca de uma hora de duração, mescla cenas documentais e vinhetas ficcionais sobre um vendedor do jornal comunista L’Humanité agredido por fascistas; operários oprimidos pela fábrica que lançam uma greve; uma família camponesa cujos bens estão sendo tomados por credores; e um jovem de classe média que não consegue emprego e passa fome. Todas essas vítimas são socorridas por pessoas ligadas ao PCF em nome da solidariedade de classe.
Nos minutos finais, os vários personagens aparecem numa grande passeata, de punhos cerrados, ao som da Internacional. Uma tomada em plano geral mostra os manifestantes caminhando com duas grandes chaminés ao fundo, sugerindo que provêm das fábricas.
Apesar da vitória do Front Populaire nas eleições, o filme circulou apenas no meio político e sindical. Seu lançamento comercial só se deu em 1969.
Uma das primeiras iniciativas da classe operária francesa que iriam desaguar no Maio de 1968 foi a greve dos operários da manufatura têxtil Rhodiaceta, de Besançon, em março de 1967. Uma greve diferente, que envolvia, além das reivindicações de praxe, ocupação da fábrica, discussão ampla da vida operária e animação cultural. Chris Marker e Mario Marret foram convidados pelos operários a documentar o movimento.
À Bientôt, J’Espère (Até logo, espero) cobre as ações coletivas e também se estende em entrevistas individuais com trabalhadores e seus familiares, numa visão íntima dos impactos do trabalho sobre seus corpos e espíritos. O filme se inicia com um delegado sindical tentando atrair a atenção dos operários que saem da fábrica numa tarde de inverno, sob neve, perto do Natal. O rapaz apela a que parem e ouçam as notícias que ele traz de outra fábrica da Rhodia, em Lyon. Poucos o atendem, até porque as condições climáticas não eram convidativas.
Depois de exibir o filme aos trabalhadores e ouvir críticas ao que faltou mostrar, Chris Marker e seus amigos decidiram criar o Grupo Medvedkine, que apenas forneceria os meios técnicos para os operários filmarem suas próprias experiências. O grupo teria unidades em Besançon e Sochaux.
Os eventos de maio de 1968 na França reuniram operários, estudantes, intelectuais e artistas em grandes manifestações e ações diretas contra o sistema educacional e as condições de trabalho durante o governo de Charles De Gaulle. A CGT – Confédération Général du Travail, maior central sindical do país e ligada ao Partido Comunista Francês, liderava o movimento dos trabalhadores, que fizeram grandes greves e ocuparam diversas fábricas, como as automobilísticas Renault e Peugeot.
Uma equipe de ativistas, sob a direção de Paul Seban, editou o documentário La G.G.T. en Mai 68, crônica e análise do movimento de maio/junho, composto por materiais então filmados em 16mm e Super 8, acrescidos de depoimentos gravados um ano depois. O filme (veja na íntegra aqui) relata a eclosão das greves, o seu desenvolvimento, as manifestações, as negociações e os seus resultados, com o regresso ao trabalho.
A edição alterna cenas de grandes passeatas e atos públicos com comentários de dirigentes sindicais e militantes de base. A frequência com que se ouve a Internacional e outros cantos de esquerda confere um tom épico ao documento. Já na abertura, o locutor em voz over descreve as ações da CGT sobre as imagens de uma massa de trabalhadores saindo de uma fábrica e recebendo panfletos da central sindical. A CGT estava presente, diz a narração, “nas portas das fábricas, em cada canteiro de obras, em cada oficina, em todos os escritórios”.
Mais adiante, o filme se refere à situação em 29 de maio, quando as greves já se espalharam por toda a França. Vemos, então, diversas cenas de operários cruzando os portões de fábricas no rumo de manifestações convocadas pela CGT em favor de progresso social e democracia. Um dos portões ostenta a inscrição “Seguimos na luta”. A montagem conecta diretamente a evacuação dos postos de trabalho com as massivas passeatas que ocorriam em diversos pontos do país.
Ainda sob os eflúvios de maio de 1968, Coup pour Coup (algo como “dente por dente”) pôs em cena uma greve fictícia numa pequena fábrica têxtil no interior da França. O filme foi criado e dirigido por Marin Karmitz, que, antes de se tornar um dos produtores e exibidores mais importantes do país (produziu Kieslowski, Chabrol, Kiarostami, Haneke), foi um cineasta militante de esquerda maoísta. Coup pour Coup foi o terceiro e último longa-metragem que dirigiu.
O elenco foi constituído de poucos atores e, na maior parte, de operárias desempregadas. Elas colaboraram ativamente na construção das cenas e dos diálogos, sendo que algumas representavam a si mesmas. Embora roteirizado e encenado, o filme foi apresentado como um documentário.
Vemos a rotina estafante da linha de montagem, com as trabalhadoras sendo submetidas a longas jornadas sob a vigilância opressiva de supervisores. Um deles é visto tentando assediar uma jovem operária. A situação gera protestos e crises de nervos por parte das mulheres, levando-as a discutir uma forma de libertação. Primeiro, pelo caminho de pequenas sabotagens, como um curto-circuito para atrasar a produção, e do deboche dos representantes do patronato.
Na primeira de duas cenas de saída de fábrica, as operárias apenas conversam sobre suas insatisfações no emprego. Na segunda, ao cruzarem o portão da fábrica após um turno de trabalho, elas despejam farinha sobre a cabeça da supervisora tirânica.
A luta, porém, acaba assumindo o caráter de uma greve selvagem, pois elas rejeitam também o sindicato, visto como mais um mecanismo de subjugação. A questão de gênero passa ao primeiro plano. O sindicalista, assim como o patrão, é um homem que simboliza a sujeição da mulher. “Quando chegamos em casa, o marido substitui o patrão”, cantam.
Nas três semanas em que ocupam a fábrica, elas se divertem, passam a se conhecer melhor e fortalecem os laços coletivos. Exigem melhores condições de trabalho, aumento de salário e a readmissão de duas colegas tidas como agitadoras. O escritório é transformado em creche. Elas controlam o portão da fábrica e enfrentam policiais e meganhas fascistas enviados pelos patrões. No clímax do movimento, sequestram o dono da fábrica e o mantêm cativo no “aquário” da gerência por quatro dias, enquanto exprimem sua desforra em palavras e restrições (dente por dente). Fazem o que chamam de “justiça popular”. A greve ganha o apoio de outras classes e sai, por fim, vitoriosa.