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Introdução

Fragmento de "A Visit to Peek Frean & Co's Biscuit Works" (1906) 

Sou um parágrafo. Clique aqui para adicionar e editar seu próprio texto. É fácil.

Por  mais controvérsias que haja a respeito, convencionou-se que a primeira câmera de cinema (cinematógrafo, destinado à exibição coletiva e simultânea) apontou para o portão de uma fábrica. La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (1895) ficou consagrado como o primeiro filme, a ponto de batizar o Chemin St. Victor, em Lyon (França), como Rue du Premier Film.

 

Quiseram os caprichos da história que o nascimento do cinema como indústria tenha se dado na porta de uma indústria, e que seus primeiros protagonistas fossem operários. Desde então, o binômio cinema-indústria passou a concorrer com o binômio cinema-arte. Ao mesmo tempo, a cena de trabalhadores saindo de seus locais de trabalho virou um motivo frequente no cinema, aí incluídos documentários, reportagens, filmes industriais, de propaganda, de militância política e de ficção.

 

Sobre essa tradição, quando completava 100 anos, se debruçou Harun Farocki em seu filme Arbeiter verlassen die Fabrik ((Trabalhadores Saem da Fábrica, 1995), assim como no ensaio homônimo e outros projetos correlatos (veja capítulo A fábrica segundo Harun Farocki). Transcorridos mais 30 anos, e inspirado pelo trabalho de Farocki, eu me propus ampliar e atualizar o escopo da pesquisa, assim como investigar as muitas apropriações, reinvenções e experimentações desse motivo recorrente em 130 anos de produção audiovisual. O enriquecimento de sentidos (sociais, políticos, estéticos) que esse tipo de cena adquiriu com o passar do tempo é a principal razão deste trabalho.

 

Antes de prosseguir para os diversos capítulos deste site-livro, vale a pena trazer algumas reflexões sobre o papel da fábrica e o sentido geral da imagem de trabalhadores deixando suas instalações ao fim de um turno.

 

O império das fábricas

 

O mundo industrial deixou sua marca na sociedade para além da mera esfera produtiva, sendo responsável por muitas de nossas dinâmicas sociais contemporâneas. Estou citando aqui Vinicius Patrocínio Pereira Costa em A Fábrica como Instituição da Modernidade, que por sua vez se refere ao livro Mastodontes: a História da Fábrica e a Construção do Mundo Moderno, de Joshua Freeman.

 

Com o advento das grandes fábricas, o dia-a-dia dos trabalhadores passa a ser marcado por uma rígida rotina entre a casa, o meio de transporte e o trabalho, com algumas interrupções nos estímulos e diversões da cidade. A fábrica se torna o locus de uma série de contradições. Ao mesmo tempo que condensa um imaginário de horror ancorado em exploração do trabalho, degradação ambiental e miséria social, carrega também a promessa de um futuro glorioso pautado na abundância material.

 

Exposições e feiras de inovação mecânica, expondo o maquinário fabril e os

bens oriundos das fábricas, materializaram essa atração que o mundo industrial exercia nas pessoas, pois encarnavam o “progresso”, a fartura e a “civilização”, anota Freeman. Com a industrialização crescente nos países socialistas, mesmo aqueles que rejeitavam a sociedade de mercado compartilhavam da visão de que a indústria simbolizava o avanço, o futuro e o progresso, e que, portanto, deveria se tornar a norma dali por diante.

 

Contudo – ainda valendo-me de Costa e Freeman –, ao contrário da Europa ocidental e dos EUA, onde a função das fábricas era, quase que exclusivamente, a produção de bens, na Rússia as unidades produtivas cumpriam também um importante papel cultural e educacional que almejava formar não só operários qualificados, mas também cidadãos socialistas capazes de erguer, solidificar e aprofundar o comunismo. Pela primeira vez na história, o gigantismo fabril ultrapassava a mera dimensão econômica e se tornava um pilar cultural e ideológico para construção de um mundo alternativo ao capitalismo ocidental.

Em Pictures of Crowd Splendor, Tom Gunning defende que o século XX (“o século das massas”) trouxe um novo estágio de visibilidade para a classe trabalhadora, até então eclipsada no campo das representações oficiais. O cinema é em boa parte responsável por isso. No entanto, por razões de “segurança” e “privacidade” institucional, o trabalho no interior das fábricas nunca foi o forte dessa nova visibilidade, exceto na área do cinema industrial, que se propõe justamente descrever (e enaltecer) os processos de produção. O apelo da filmagem dos irmãos Lumière ajudou a estabelecer o portão como locação privilegiada para cinegrafistas de múltiplas tendências.

Do portão para fora

 

A saída da fábrica é a fronteira física entre trabalho e lazer, entre a rígida função social do trabalhador e sua vida privada. Enquanto a estrutura do trabalho atomiza e sincroniza os empregados, o portão de saída os reagrupa e ao mesmo tempo os libera, formando a imagem concreta de uma força de trabalho. Ao passar por ali, todos têm alguma coisa em comum. É local de encontro ou de dispersão, mas também de organização, protestos, piquetes, etc. Como salientou Farocki, os trabalhadores viram as costas para o trabalho quando saem da fábrica.

 

Neste site-livro vamos encontrar diversas acepções adquiridas pela saída de fábrica no cinema. Não só da fábrica, mas de minas, estaleiros e edifícios corporativos, seja de onde for que existam trabalhadores reunidos. Navegaremos desde o filme inaugural dos Lumière à fetichização da cena realizada anualmente no portão do Instituto Lumière, o mesmo local da filmagem de 1895. Veremos como esse texto cinemático fundador foi reencenado seja para expor condições de trabalho, seja no contexto de uma dramaturgia da fábrica, ou ainda no campo do cinema industrial. As variações mais políticas estão abordadas em relação ao cinema militante e às dramatizações de lutas trabalhistas ao longo dos últimos 130 anos.

 

O cinema experimental tampouco poderia estar de fora desse estudo, uma vez que a saída de fábrica foi submetida ao discurso da pós-modernidade. Não só o modelo de filmagem foi reapropriado e questionado, como também o próprio material fílmico dos Lumière foi submetido às intervenções de experimentalistas.

 

É preciso, porém, lembrar que, antes do cinema, a imagem de trabalhadores debandando ao final de um turno era tema frequente na fotografia industrial desde sua introdução em meados do século XIX. Já então esse tipo de representação se prestava a expor o patrimônio humano dos donos das fábricas – o que não deixa de ser uma das finalidades do filme dos Lumière. As fotos de portão de fábrica ganharam o status de postais na virada do século XX como mais um aspecto da pujança urbana de então.

 

Na galeria abaixo é possível percorrer alguns exemplos dessas fotografias. Clique em cada uma para ampliar:

No ocaso das massas operárias

 

Muito do que se vê no conjunto de imagens aqui reunido é hoje apenas história. O trabalho, em especial o da indústria e de grandes estruturas, não é mais o que era antes da automação, da robotização e da globalização. Fábricas são desativadas, sistemas de produção se atomizam, as novas configurações do trabalho digitalizado isolam os trabalhadores em células pequenas ou mesmo individuais. A precarização das relações trabalhistas atingiu também as indústrias em virtude da fragmentação e terceirização dos processos de produção.

 

A imagem da massa de operários cruzando os portões da fábrica ou similar, portanto, já não se configura com tanta frequência. Salvo em países periféricos, para onde grande parte do trabalho operário foi transferido, o panorama global não difere muito do que constatou o professor da USP Ruy Braga a respeito dos EUA no artigo O Mito do ‘ódio branco’ da Classe Trabalhadora: “Mesmo após o ciclo de desindustrialização que castigou inúmeras comunidades de trabalhadores brancos nos Estados Unidos, ainda é possível encontrar operários engajados em fábricas, porém sob condições salariais bastante inferiores e submetidos a altas taxas de rotatividade resultantes da difusão da estratégia de terceirização empresarial nas fábricas. Ou seja, esses grupos operários já foram absorvidos pelo precariado, não havendo nada em termos ocupacionais que os diferencie significativamente dos trabalhadores racializados que trabalham, por exemplo, nos armazéns da Amazon.”

 

O corolário dessa situação é que os trabalhadores não mais se reconhecem como classe, sobretudo em países periféricos. Acreditam ser empreendedores de si mesmos. Constituem uma massa informe de mão de obra “uberizada”, desempregada ou subempregada, que adere facilmente a “formas hiper-individualistas, ‘ensimesmadas’ de agir, sentir e pensar”, como aponta Felipe Brito no artigo Por que se adere ao bolsonarismo? Alguns apontamentos e notas iniciais.

 

Com isso, os sindicatos veem seu papel reduzido, e desenha-se o ocaso do sindicalismo de combate. As saídas para a luta, como proliferaram na França nos anos 1960 e no ABC paulista em fins da década de 1970, passam a ser mais raras.

 

A rarefação da imagem operária, contudo, não retira a importância da saída de fábrica como evento recorrente na história do cinema. O presente estudo fica longe de esgotar a diversidade e a frequência com que esse tropo já se fez presente nos tipos mais variados de produção audiovisual. Harun Farocki especulou que o cinema permaneceu repetindo esse mote como uma criança que repete sua primeira frase ao longo de toda a vida.

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