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Assim trabalha a Humanidade

Novas configurações do trabalho

As fábricas desempenharam um papel fundamental nos séculos XIX e XX, celebradas como encarnação da modernidade, tanto no capitalismo como no comunismo. No presente, porém, e sobretudo nos países do Ocidente, passaram a ser escondidas por não simbolizarem mais um futuro melhor. O modelo da fábrica fordista tradicional tornou-se obsoleto. Fábricas foram esvaziadas, suas máquinas embaladas e enviadas para a China. Ex-funcionários foram treinados novamente para posterior reciclagem, tornaram-se programadores de software e começaram a trabalhar a partir de suas próprias casas.

O gigantismo industrial ressurge hoje em locais com mão de obra barata e abundante, e com baixo índice de sindicalização, como a China. O assunto foi tratado em profundidade por Joshua B. Freeman no livro Mastodontes – A História da Fábrica e a Construção do Mundo Moderno.

 

Dessa forma, as cenas cinematográficas de saída de fábrica escassearam na atualidade. Diversos fatores contribuem para isso. Entre eles, a ascensão dos chamados “trabalhadores do conhecimento”, a erosão da fronteira entre casa e local de trabalho, a globalização dos modelos industriais (que pulveriza as etapas de fabricação) e a digitalização incessante do trabalho em geral.

 

A crescente mecanização e robotização da indústria levou ao desaparecimento da imagem icônica das grandes massas trabalhadoras – e, por consequência, de seus movimentos reivindicatórios. A sindicalização despencou. No Brasil, por exemplo, segundo o IBGE, a parcela de trabalhadores sindicalizados caiu à metade entre 2012 e 2023, passando de 16,1% para 8,4%.

 

Por sua vez, o neoliberalismo impôs modelos empregatícios que tornaram o trabalho “invisível”, disseminado em empreendedorismo individual e precarização das relações trabalhistas. Ken Loach abordou isso de frente em Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You), filme em que, naturalmente, não havia nenhuma saída de fábrica.

 

Posteriormente, no entender de Hito Steyerl em O Museu é uma Fábrica?, o próprio cinema foi transformado quase tão dramaticamente como a fábrica: “Ele foi multiplexado, digitalizado, serializado e rapidamente comercializado, na medida em que o neoliberalismo foi se tornando hegemônico em seu alcance e influência”.

Em 2008, portanto 113 anos depois da filmagem pioneira dos Lumière, o artista e curador estadunidense Ben Russell propôs uma variação lacônica daquele filme inaugural. De frente a um canteiro de obras em Dubai, postou sua câmera diante da saída dos operários. A imagem em plano único fixo, a ausência de captação de som e o movimento longitudinal dos trabalhadores em direção ao local da câmera são, porém, as únicas semelhanças visíveis com o filme de 1895.

 

Não há um portão a demarcar o espaço de trabalho, mas apenas a profundidade de campo a indicar os guindastes e os prédios em construção no fundo do quadro. A fábrica aludida no título do curta, Workers Leaving the Factory (Dubai), é na verdade uma “fábrica” de edifícios que se espalhava pelo emirado inteiro em época de boom da construção civil. Tratava-se de uma concepção contemporânea de fábrica, na qual os prédios eram erguidos em escala industrial (ou neofordista, como chamou Russell).

 

Os empregados eram em sua maioria oriundos do Sudeste Asiático, trazidos para Dubai em busca de oportunidade. Eles caminham do fundo da imagem para o primeiro plano com seus capacetes ou turbantes, estimulados por supervisores que acenam insistentemente e abrem caminho para que se apressem a embarcar nos ônibus estacionados mais perto da câmera. A cena sugere um rebanho de gado sendo tangido para o curral. Muitos deles dirigem um olhar curioso para a instância da filmagem, enquanto outros, com macacões verdes diferenciados, permanecem parados à meia distância, como à espera de alguma destinação.

 

Outra diferença fundamental é que os operários de Dubai não aparentam a satisfação típica de quem sai do trabalho para usufruir de sua liberdade e dos prazeres domésticos. Eles provavelmente se dirigem a um alojamento coletivo, muito longe de suas casas e famílias. A globalização do trabalho e a fuga de capitais para os países ricos em petróleo estão na base dessa nova configuração do labor operário: sem pátria, fronteiras, nem pertencimento.

 

O estilo desse filme, assim como o de Exit, de Sharon Lockhart, foi chamado por Jennifer L. Peterson de “realismo conceitual” por aplicar técnicas antigas de filmagem realista (o plano estático, a tomada observacional longa, a profundidade de campo) de maneira nova e autoconsciente na era digital. Veja Workers Leaving the Factory: Witnessing Labor in the Digital Age

O campus da Google em Mountain View, Silicon Valley, é o cenário do vídeo Workers Leaving the Googleplex, uma espécie de atualização crítica do filme pioneiro dos Lumière. Seu autor, Andrew Norman Wilson, foi contratado em 2007 por uma empresa terceirizada para fazer vídeos para o Google. Ele aos poucos percebeu que a empresa mantinha um contingente de trabalhadores, em geral negros e latinos, que portavam um crachá diferente (de cor amarela) e não gozavam dos muitos privilégios facultados aos demais empregados, tais como massagem tailandesa, transportes especiais e frequência a eventos corporativos. Eles digitalizavam livros para o Google Books em horários fixos de quatro da manhã às 14:15h.

 

Instigado pela curiosidade, Wilson tentou gravar entrevistas com alguns “amarelos”, mas foi logo interpelado pela área de segurança. Acabou demitido por romper cláusula de confidencialidade do seu contrato. Ele narra esse episódio no vídeo, enquanto mostra imagens simultâneas do prédio onde trabalhavam os digitalizadores (à direita) e outros espaços do campus. Enquanto nesses espaços privilegiados o movimento dos empregados é livre e inconstante, os “amarelos” saem todos no mesmo horário, como numa fábrica tradicional, e se dirigem diretamente para seus carros, uma vez que eram proibidos de transitar por outras áreas do campus.

 

O vídeo-denúncia, ao mesmo tempo que se insere na história do cinema, sugere transformações e continuidades nos arranjos do trabalho, do capital e da informação. Apesar do caráter virtual e contemporâneo do Google Books, o sistema de contratação aplicava regras de hierarquia e produção fordista semelhantes às da indústria mais tradicional e retrógrada. 

                                                                              Veja o vídeo na íntegra:

A Amazon criou em 2005 a Amazon Mechanical Turk, plataforma de crowdsourcing que permite a empresas e indivíduos terceirizar seus processos de trabalho através da internet. Em vez de fazer contratações temporárias, os clientes podem distribuir tarefas sob demanda para trabalhadores online espalhados pelo mundo. O modelo se presta a uma variedade de afazeres, como pesquisa, moderação de conteúdo, manuseio de dados, etc.

 

Dessa maneira, a distinção entre trabalho e vida nas sociedades pós-industriais tornou-se ainda mais tênue, uma vez que as pessoas trabalham em suas próprias casas, com seus próprios computadores. Não há mais locais ou horários específicos para o trabalho. Estamos na vigência da “fábrica social”, como chamou o pensador italiano Mario Tronti. Tampouco prevalecem mais as normas trabalhistas, substituídas por regras unilaterais definidas pelas plataformas. Do mesmo modo, a única interação possível entre esses trabalhadores dispersos e atomizados é por meio de outras plataformas digitais.  

 

Em 2018, o projeto artístico superconductr, criado por Matthias Kispert para pesquisar condições estruturais e contradições do trabalho sob demanda distribuído por plataformas digitais, realizou o vídeo Workers Leaving the Cloud Factory (Trabalhadores sainda da fábrica na nuvem). Eles contactaram microtrabalhadores e remuneraram cada um com 2,50 dólares para que se filmassem saindo do local onde trabalham.

 

O filme dos irmãos Lumière ganhava, assim, sua contrapartida da era digital. Os trabalhadores não estão mais em grupo, mas isolados em seus escritórios, estúdios, salas ou quartos. Não há qualquer ligação entre eles. Filmam-se ou deixam-se filmar sozinhos, em silêncio, separando-se de seus teclados, fechando seus laptops e dirigindo-se a outros ambientes da casa, ao quintal ou mesmo à rua. Em lugar do portão da fábrica, temos as portas dos cômodos domésticos sendo abertos ou fechados. Um deles é cadeirante.

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