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Dramaturgia da fábrica

O lugar do trabalho decente

Cidade Ameaçada

Inferno ou paraíso. A fábrica já foi retratada das duas maneiras. Os exemplos apresentados aqui mostram o trabalho na indústria como índice de decência e honestidade. Seja como simples louvor ao trabalho digno, seja em contraste com a ação de pilantras e bandidos, os personagens desses filmes encarnam valores positivos, que são automaticamente identificados com a fábrica.

Na trilha do Coal Face britânico de Alberto Cavalcanti, o canadense Robert Edmonds dirigiu em 1943 o curta-metragem Coal Face, Canada. Nesse caso, uma dramatização sobre o apelo do trabalho nas minas de carvão. O jovem Bruce Adams retorna da guerra para a sua cidade natal, uma coal town, onde seu pai morrera num acidente na mina em que trabalhava. Bruce ouve os relatos de um velho companheiro do pai e aprende a admirar a vida comunitária dos mineiros, terminando por empregar-se também na extração de carvão.

Trata-se de um filme chapa branca, produzido pelo National Film Board do Canadá para o Ministério do Trabalho com a colaboração de empresas de mineração e do sindicato de mineiros. Aos 7’, vemos uma troca de turno na mina. Os trabalhadores levam os cavalos para se alimentarem nos estábulos subterrâneos e depois sobem à superfície com suas lanternas.

Maior que o Ódio (1951), de José Carlos Burle, fotografado por Edgard Brazil, é um melodrama policial com tintas de filme noir sobre dois amigos de infância que seguem caminhos opostos quando adultos. Stênio (Anselmo Duarte) leva uma vida falsa de luxo, baseada em conquistas, golpes e roubos, chegando a cometer um assassinato perto do final. Sérgio (Jorge Dória) tem vida honesta de trabalhador e permanece no bairro humilde do Rio onde sempre moraram. Sua irmã, Vanda (Ilka Soares), é apaixonada por Stênio, relação que vai conduzir ao ápice dramático do argumento escrito por Jorge Dória e roteirizado por Alinor Azevedo e Burle.

A fábrica onde Vanda trabalha e Sérgio também se empregará é um ícone do lado decente de uma história tipicamente maniqueísta. Quando Stênio reaparece na vida dos dois e tenta obrigar Sérgio a roubar o cofre da fábrica, este recusa-se a obedecê-lo como prova de honradez.

Há duas cenas de saída de operários no filme, rodadas nas instalações da Companhia América Fabril, indústria têxtil localizada no município de Magé (RJ). Ambas aparecem sonorizadas com a sirene de fim de turno e o burburinho da movimentação humana. Na primeira, a tomada abre com a chaminé em destaque e desce até o pátio, vendo-se em seguida dois planos da caminhada dos trabalhadores como se do ponto de vista da chaminé. Stênio e Sérgio estão esperando pela saída de Vanda. Stênio, posando de gente importante, a corteja e lhe promete felicidade, evidenciando o contraste entre seus planos perversos e o ambiente de trabalho digno. Ali se dá a primeira aparição do pequeno jornaleiro (figura comum em antigos portões de fábrica) que terá papel crucial na trama.

 

Na segunda cena, Sérgio também já trabalha no escritório da fábrica. Ao deixar o expediente,  compra jornal com o garoto e é confrontado com a notícia do assassinato cometido por Stênio. Os comentários de dois outros empregados diante da manchete situam a porta da fábrica como local de convivência, troca de informações e especulações (veja capítulo Portões da convivialidade).   

Papel semelhante desempenha outra fábrica têxtil em Cidade Ameaçada (Roberto Farias, 1960). O nome de Alinor Azevedo também reaparece assinando argumento e diálogos. Teresinha (Eva Wilma) é uma operária, jovem doce e recatada, que se sente atraída pelo antigo colega de escola Nico (Reginaldo Faria), mais conhecido como o perigoso bandido Passarinho que ameaça a segurança da cidade. Um locutor de notícias o coloca em contraste com “a gente pacata e trabalhadora de São Paulo”.

 

Passarinho é um bandido trágico, uma vítima social. Oscila entre a insolência dos seus colegas de bando e um vago desejo de se regenerar depois que Teresinha dele se aproxima. Tem uma atenuante, mantida até o fim: a de que nunca matou ninguém. No entanto, o conluio de um jornalista sem escrúpulos (Jardel Filho) com a polícia vai criar dificuldades para essa reabilitação.

 

Aos 39’, temos a sequência da saída da fábrica, bastante aparentada com a mesma que Alinor escreveu para Maior que o Ódio. Inicia-se com uma tomada baixa dos pés dos trabalhadores em movimento. O plano seguinte é similar ao dos Lumière, com os operários e operárias cruzando o portão e se dispersando pela esquerda ou pela direita. Há mesmo um homem conduzindo uma bicicleta. Teresinha se despede de uma colega e demora-se à espera de Nico, que não aparece. Até que chega um menino para levá-la até onde ele se encontra. Ainda com as chaminés ao fundo, segue-se um diálogo sobre mudança de vida e um último golpe decisivo. Teresinha deixa entrever pela primeira vez sua cumplicidade com Passarinho, pautada por uma paixão que desafia os perigos.

 

Na medida em que ela o acompanha e perde o emprego na fábrica, fica selada sua troca da vida decente pela transgressão. Enriquece a personagem o fato de, apesar dessa opção, ela continuar a ser a mulher símbolo de redenção e devoção à pessoa amada.

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