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Dramaturgia da fábrica

Palco de transformações sociais e políticas

Seja no movimento Solidariedade da Polônia, seja nas gigantescas metamorfoses sofridas pela moderna sociedade chinesa ou mesmo no rastro do golpe civil-militar de 1964 no Brasil, as fábricas protagonizaram ou simplesmente refletiram as transformações na história de seus respectivos países. O papel social da indústria entra em jogo na equação política e econômica em razão das ações da luta operária e das repercussões na produção de bens. Não enfocamos aqui as saídas de fábrica em situação de protesto e confronto, como as verificadas por ocasião das greves metalúrgicas no ABC paulista em fins dos anos 1970. Estas são abordadas no capítulo Saída para a luta.    

A cena que nos interessa em O Desafio (1965) é uma síntese dos dilemas colocados pelo filme de Paulo Cesar Saraceni. Ada (Isabella), mulher de um industrial, decide visitar pela primeira vez a tecelagem do marido. Sozinha em meio às máquinas, perturbada pelos movimentos mecânicos, o ruído e as luzes, ela não suporta a experiência e sai rapidamente. É a materialização da sua crise: está cansada das convenções burguesas mas tampouco suportaria mudar de classe caso trocasse o marido pelo jornalista Marcelo (Oduvaldo Viana Filho), com quem tem um caso em processo de deterioração.

 

Marcelo, por sua vez, é um jornalista acabrunhado pelo golpe civil-militar de 1964 e o fracasso do sonho revolucionário. Está “na fossa” (como se dizia na época), e vê “o medo tomando conta de tudo e de todos”. Sua impotência e pessimismo entram em choque com o cinismo e a indiferença de outros personagens. Com Ada, instaura-se o conflito entre o individualismo burguês dela e os ideais coletivos do intelectual engajado, assim refletindo a impossibilidade de conciliação entre as classes.

 

Estatelada no portão da fábrica enquanto os operários e operárias passam por ela ao fim do turno de trabalho, Ada é a imagem do imobilismo e da alienação. A influência de Michelangelo Antonioni sobre Saraceni é palpável.

Os estaleiros de Gdansk e o movimento Solidariedade estão no centro do clássico polonês O Homem de Ferro (1981), de Andrzej Wajda, premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Esse filme foi uma continuação de O Homem de Mármore (1976), no qual uma repórter de TV pesquisava a figura de Birkut, operário-padrão do regime socialista usado como peça de propaganda pelo governo de Stalin. Depois de ser amplamente festejado e servir de modelo para estátuas do trabalhador ideal talhadas em mármore, Birkut desaparecera misteriosamente. A repórter, por sua vez, acabava demitida para não “canonizar” um personagem que já não interessava ao sistema.  

 

O Homem de Ferro se passa em ambiente histórico quase simultâneo ao das grandes greves de 1980 em Gdansk. Winkiel, repórter de rádio alcoólatra e decadente, é encarregado pelo governo de cobrir o movimento grevista com o intuito de desacreditar os seus líderes. O foco de interesse principal é Maciek, operário do estaleiro com importante atuação no movimento. Maciek é filho de Birkut e está casado com Agnieska (Kristyna Janda), a ex-repórter de O Homem de Mármore. No curso de suas investigações, Winkiel vacila em levar adiante sua missão de agente infiltrado e recobra alguma consciência política da juventude.

 

Os dois filmes se intercomunicam e investigam o trabalho da mídia estatal sob o socialismo polonês. O Homem de Ferro faz uma mescla inextricável de ficção e documentário, tendo Lech Walesa e muitos outros personagens reais fazendo seus próprios papéis.   

 

A primeira das três saídas coletivas dos estaleiros tem um significado especial para o contexto polonês da época: os operários conduzem uma grande cruz de madeira e a fincam na praça fronteiriça, sinalizando a origem de um monumento cruciforme que seria erigido no local. Em seguida, as pessoas rezam pelas vítimas do massacre ocorrido durante uma greve de 1970. O apoio da Igreja Católica ao movimento Solidariedade foi fundamental para que Gdansk abrigasse o primeiro sindicato livre entre os países do Pacto de Varsóvia.

 

Outras duas cenas enfocam o portão da fábrica como local de encontro e troca de informações. Numa delas, em flashback, vemos Maciek encontrar-se com um velho amigo e repudiar sua bajulação de um secretário do partido. O fluxo de pessoas detrás e à frente dos dois personagens instaura um clima de efemeridade adequado à conversa. Na outra cena, após uma tomada documental de Walesa sendo festejado após um acordo do Solidariedade com o governo, o repórter Winkiel é alertado por um agente estatal de que o acordo não passa de um papel sem valor. De fato, em 1981, foi imposta a lei marcial e o Solidariedade passou à clandestinidade.      

A fábrica em si é a personagem central de 24 City, híbrido de documentário e ficção criado por Jia Zhang-ke em 2008. A massiva fábrica estatal 420 foi deslocada nos anos 1960 de Shenyang para Chengdu, província de Sichuan, como parte do esforço de Mao Tsé Tung para realocar a produção de armamentos e as instalações de segurança das regiões costeiras vulneráveis para o interior do país. No seu auge, a 420 chegou a ter 30.000 empregados na construção de aviões e constituía uma cidade autossuficiente. Em 2005, foi adquirida pelo grupo Huarun para demoli-la e construir no local um luxuoso complexo residencial, comercial e de entretenimento.

 

Como em vários de seus filmes, Zhang-ke examina com lupa humana as grandes transformações correntes na China da virada do século. Diante de sua câmera, operários aposentados falam e cantam sobre sua relação emocional com o trabalho, traço típico do modo de vida comunista. A 420 é símbolo de uma mentalidade que ia ficando para trás. O cineasta opera num campo difuso entre a nostalgia e a ironia, confrontando os veteranos com os jovens descendentes, já desligados do sonho industrial. Em meio aos personagens documentais, alguns atores e atrizes interpretam depoimentos mais longos e narrativos. Joan Chen, por exemplo, faz a operária conhecida como “Flor da Fábrica”, que costumava ser fisicamente comparada a... Joan Chen. Zhao Tao, esposa do diretor, vive uma jovem comerciante que aspira instalar os pais num dos prédios novos de 24 City.

 

Uma câmera instalada em ponto alto capta o movimento dos operários no portão principal da fábrica. Predomina o tom melancólico tanto na saída dos trabalhadores, que abre o filme, quanto mais adiante na entrada e num terceiro momento com o espaço esvaziado da presença humana. O clipe a seguir reúne as três tomadas icônicas do símbolo de uma era em vias de extinção.

O ocaso das grandes indústrias socialistas chinesas é também o tema de A Oeste dos Trilhos (Tie Xi Qu), monumental documentário de Wang Bing lançado em 2002. Tie Xi, na província de Shenyang, foi o maior distrito industrial da China maoísta. Com o crescimento da economia de mercado e a mudança de foco da indústria pesada para outros ramos, as fábricas de Tie Xi começaram a fechar, uma por uma.

 

O filme de Wang Bing, com duração de pouco mais de nove horas e dividido em três partes, descreve os trabalhos que ainda persistiam, assim como a vida das famílias operárias, o advento da penúria para muitas delas e a extinção de mecanismos sociais. O estilo é rigorosamente observacional e obsessivamente atento às minúcias do cotidiano.

 

Em dado momento da primeira parte, um grupo de trabalhadores deixa um galpão e se dirige ao portão de saída. A cena se distingue por iniciar-se junto aos homens que acabam de cumprir uma tarefa exaustiva no interior do galpão. Mantendo o padrão de acompanhamento in extenso de todo o filme, a câmera os segue em parte da caminhada, chegando mesmo a atrair olhares surpresos de alguns. A saída (para uma pausa) não se conclui no plano, ficando apenas insinuada pelo corte final.

 

Os operários não parecem sujeitos a uma ordem ou cronograma rígido. A pausa é decidida por eles um pouco antes de se retirarem. A cena sugere um misto de autogestão e perda de diretrizes em tempos de desarticulação do sistema.

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