FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Reinvenções e experimentações

Afora sua frequente recorrência no cinema narrativo, no documentário e em projetos de cunho sociológico, além de todas as apropriações fetichistas e paródicas, o modelo cênico criado em 1895 pelos irmãos Lumière seduziu artistas visuais e experimentalistas de várias procedências. Principalmente nas últimas décadas, com o advento do pós-modernismo, a saída de fábrica foi reinterpretada de maneira crítica ou puramente formalista. Seja no questionamento do modelo cênico, seja na decomposição de sua matéria fílmica, o pequeno curta de Lyon está na origem de todo um filão do cinema de invenção.
O video-ensaio Workers are Leaving the Factory (2021), da artista visual eslovena Neja Tomšič, refere-se explicitamente ao filme inaugural dos irmãos Lumière para se colocar algumas perguntas: o que significa observar trabalhadores saindo das fábricas hoje? Quem são esses trabalhadores? Qual é o seu trabalho?
Diante do portão do estaleiro Fincantieri, em Monfalcone, Itália, Neja registra em câmera lenta a saída dos empregados, ao mesmo tempo que sua voz questiona o quanto essas imagens podem dizer sobre eles. Não é muito. Os operários são vistos à distância e usam máscaras contra a Covid-19, o que eventualmente oculta um pouco mais de suas fisionomias individuais.
Tampouco é muito o que as imagens dizem sobre o trabalho. O portão demarca o espaço inacessível ao escrutínio das câmeras. Neja afirma que seguranças controlavam os ângulos permitidos à filmagem. Ela então procurava locais de onde pudesse romper essa barreira e vislumbrar algo dos gigantescos navios em construção ou recém-construídos. No entanto, mesmo aí, as imagens dizem pouco. O Fincantieri é um estaleiro que monta grandes navios de cruzeiro. Os operários fixos constroem apenas o casco, ficando todo o resto a cargo de uma galáxia de empresas terceirizadas. As condições de trabalho, assim, ficam difíceis de serem avaliadas.
Um dos navios seria destinado à moradia de super-ricos que desejassem viver à margem das realidades políticas e dos impostos de qualquer país. Em sua narração, Neja Tomšič comenta: “Trabalhadores, terras e transações estão ficando difíceis de ver”.
Workers are Leaving the Factory constata a limitação da cena clássica dos Lumière e propõe uma reflexão sobre a invisibilidade cada vez maior do sistema de produção e circulação das riquezas. Destaquei aqui três pequenos trechos do filme de 21 minutos.
Outra referência direta ao filme dos Lumière é feita no curta austríaco Die ArbeiterInnen verlassen die Fabrik | workers leaving the factory (again). A autora Katharina Gruzei desaprova o título alemão do filme dos Lumière, que se refere somente ao masculino (Arbeiter, trabalhadores), quando grande parte das pessoas que deixavam a fábrica em Lyon eram mulheres. Daí ela grafar ArbeiterInnen (trabalhadoras) com destaque para o “I” maiúsculo que define o gênero.
O filme foi gravado em 2012 numa fábrica de cigarros desativada em Linz, Áustria. Em 2009, quando foi fechada, a Linzer Tabakfabrik deixou sem emprego cerca de 300 funcionários. Sob um surdo ruído industrial, depois pontuado pelo tilintar das luzes que piscam, algumas dezenas de pessoas são vistas de costas, em silhuetas, caminhando num longo corredor. A câmera segue com elas, como se fosse mais um a caminhar. Não há sinal de trabalho no local. O tremeluzir das lâmpadas, alternando entre escuridão e claridade tênue, cria uma atmosfera fantasmagórica e, junto com os cortes sequenciais da montagem, faz com que o corredor pareça não ter fim.
Aos 7’27, vemos todos e todas posando de frente, em posição estática. São homens e mulheres, indistintamente. Por fim, os vemos sair da fábrica e se dispersar para a esquerda e a direita em silêncio, como em Lyon. O portão, então, se fecha ritualisticamente. Lyon-Linz.
A reapropriação de Katharina Gruzei deixa também um comentário sobre o fim da era industrial. Os espaços esvaziados da fábrica e a instabilidade da iluminação remetem a um contexto em que indústrias de países desenvolvidos foram desativadas e migraram para países de mão de obra mais barata.
O curta está aqui na íntegra:
Apresentado originalmente como videoinstalação silenciosa em dois canais, Workers Leaving the Factory (Trabalhadores saindo da fábrica), de Benjamin Green (2019), propõe uma simples comparação entre duas saídas de trabalho. À esquerda, trabalhadores emergem das instalações do Sports Direct Warehouse, na cidade-satélite de Shirebrook, em Derbyshire, Inglaterra. À direita, vemos funcionários deixando um prédio da Fenchurch Street, no coração financeiro da City de Londres.
A experiência requer um conhecimento prévio das características de cada um desses locais de trabalho. O Sports Direct é um gigantesco armazém da grife esportiva homônima com mais de 240 mil metros quadrados de espaço útil e cerca de 4 mil empregados. Segundo investigação do jornal The Guardian, em 2015, o depósito era considerado um “gulag” para trabalhadores em sua maioria imigrantes do Leste europeu. Os salários eram baixíssimos, e as condições de trabalho, draconianas. A cada fim de turno, os empregados eram submetidos a demoradas inspeções contra roubos.
Já no prédio envidraçado da City de Londres, nada parecia desabonar os patrões. Mas o que aparece nos dois monitores não configura qualquer grande diferença. A não ser que consideremos o ambiente urbano de Londres, que interfere a todo tempo no primeiro plano da imagem e perturba a visão dos, digamos, personagens principais. Cabe notar também a presença de negros e indianos na capital, algo inexistente no que nos é dado a ver da provinciana Shirebrook.
Vemos aqui o que Benjamin Green chama de versão curta do seu trabalho:
Também no formato de videoinstalação, a artista britânica Nancy Davenport apresentou na Bienal de Liverpool de 2008 o trabalho Workers (Leaving the Factory). Gravado na fábrica de automóveis Jaguar em Halewood, Inglaterra, o material contemplava uma projeção em single channel de operários chegando e saindo do estabelecimento. O segundo elemento se compunha de seis monitores exibindo a pausa dos trabalhadores para o chá.
As imagens se caracterizavam por um híbrido de fotografia animada e vídeo, como sói acontecer na prática artística de Nancy Davenport. Ela se dedica especialmente a explorar temas como globalização, trabalho, verdade e ficção.

O artista estadunidense Les LeVeque levou a um extremo a recorrência e reificação do filme dos Lumière. Em Workers Leaving the Factory – Ten Days That Shook the World (Trabalhadores saindo da fábrica – Dez dias que abalaram o mundo), de 2011, ele baixou o filme de 1895, o reenquadrou, recomprimiu repetidamente e reverteu seu movimento, fazendo os trabalhadores retornarem de costas e ocuparem a fábrica.
A trilha sonora do filme Outubro, de Eisenstein, igualmente distorcida, agrega um sentido subversivo ao trabalho. Uma revolução de trabalhadores no lugar de um atendimento à vontade do patrão.
Sobre o processo de realização do vídeo, melhor passar a palavra a LeVeque, criador voltado para a exploração de tecnologias analógicas e digitais:
“Como se sabe, em 1895, os Lumière reuniram aproximadamente 100 trabalhadores e os aglomeraram atrás dos portões de sua fábrica. Quando os portões foram abertos, o filme começou e os trabalhadores "comprimidos" emergiram e se dispersaram na rua. Nesta obra digital, uma versão online do filme dos Lumière foi baixada e submetida a um processo de recompressões repetidas, percorrendo seis configurações padrão do QuickTime. Como mofo em uma fatia de pão, a cada recompressão, artefatos coloridos de má interpolação apareciam e cresciam. Imitando as práticas do fordismo, produzi mais de 878 desvios do filme original de 1895. Esta reedição de 13 minutos consiste em 29 dos 878 filmes distorcidos de forma diferente que articulam o processo de contaminação digital do filme.
Esta edição usa 16 diferentes amostras de áudio recomprimidas e degradadas do filme Outubro de Eisenstein com a trilha sonora e efeitos sonoros de Shostakovich. O áudio foi então processado por meio de um software personalizado para aplicar uma pulsação panorâmica da esquerda para a direita a uma frequência de 9 hertz. Para mim, aplicar esse processo a um dos primeiros filmes já feitos foi uma tentativa de fazer engenharia reversa da reificação do filme original enquanto fantasiava, por meio da trilha sonora, uma redefinição da Revolução Comunista.”
Vejam a íntegra do filme:
Um único fotograma do filme dos irmãos Lumière rendeu ao experimentalista austríaco Peter Tscherkassky um novo filme de pouco mais de 3 minutos, no qual ele elimina todo o aspecto figurativo, ficando apenas com um balé de luz e sombra: a essência da imagem cinematográfica. Motion Picture (La sortie des ouvriers de l'usine Lumière à Lyon), de 1984, é uma reinterpretação lúdica do nascimento do cinema.
Mais uma vez convoco o autor para contar o processo de fabricação do filme:
“Com Motion Picture eu queria isolar e conectar os blocos de construção elementares do aparato cinematográfico e revelar o código de ilusão fundamental. Então eu fui para a câmara escura e montei 50 tiras de 16 mm de filme não exposto na parede, cobrindo verticalmente uma superfície de 50 x 80 cm no total. Nessa tela cinematográfica em branco eu projetei um único fotograma de La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (1895), dos irmãos Lumière. Processei as tiras de filme expostas e em seguida as organizei em uma mesa de luz para formar uma duplicata de 50 x 80 cm do quadro original de Lumière. Então editei as tiras de filme juntas, começando com a primeira tira à esquerda e prosseguindo para a direita. O resultado é um filme de 16 mm de três minutos exibindo as partículas de escuridão e luz que constituem a imagem original de Lumière, esvaziada de todo conteúdo figurativo.”
Incluo aqui uma obra que não é audiovisual, mas se relaciona indicialmente com o tropo da saída de fábrica. O artista visual multimídia brasileiro Jonathas de Andrade criou a instalação Suar a Camisa com 120 camisas suadas e negociadas – trocadas, compradas, doadas – com trabalhadores que ele abordou ao acaso nas ruas, inclusive à saída de locais de trabalho.
A cena clássica do cinema é substituída por seu subproduto: a camisa impregnada das manchas, odores e vincos produzidos pelos corpos durante a labuta. As logomarcas de empresas, de multinacionais a pequenos negócios locais, criam um discurso paralelo sobre a discrepância entre empregados e empregadores.
A exposição em formações distintas pode sugerir uma fila de emprego, uma assembleia ou uma greve. “Suar a camisa como enfrentamento”, propõe Jonathas de Andrade.
Passe o mouse sobre a galeria para ver quatro fotos da instalação:



