FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Saída para a luta

Greves, piquetes, panfletagem, repressão policial... As portas das fábricas constituíram um campo de batalha capturado pelas câmeras ao longo do século XX e início do XXI. Para Harun Farocki, a área externa da fábrica era um espaço dialético, palco de confronto direto entre o trabalho e o capital. Se, para o capital, esse espaço é propriedade da empresa, os trabalhadores dele se apropriam como área pública de discussão, reunião e protesto. Em Mastodontes: a História da Fábrica e a Construção do Mundo Moderno, Joshua B. Freeman destaca que o cotidiano fabril, apesar de opressor, possibilitou aos operários forjar elos de solidariedade e consciência de classe capazes de resistir e combater a autocracia industrial, que reprimiu sempre com violência a organização trabalhista.
Veremos nesse primeiro subcapítulo exemplos bastante distintos desse tropo da saída para a luta. Eles ilustram tanto a alienação quanto diversas formas de engajamento sob diferentes contextos políticos.
Em O Grito (Il Grido), de 1957, Michelangelo Antonioni desloca para o homem seu foco habitual nas mulheres ao tratar de relacionamentos amorosos. Aldo (Steve Cochran) é operário de uma refinaria de açúcar no Vale do Po que vive há sete anos com Irma (Alida Valli), mulher casada cujo marido está trabalhando na Austrália. Quando ela o abandona por outro homem, ele pega a estrada com a filha e passa a peregrinar por vários lugares e várias mulheres. Por fim, decide voltar ao vilarejo de Goriano, na esperança de reaver o amor de Irma. Desiludido mais uma vez, suicida-se.
Aldo é uma imagem do fracasso. Seu desengano amoroso o torna incapaz de responder ao afeto das outras mulheres e o paralisa no que tange à vida prática. Conseguir um novo trabalho é um desejo vago em sua mente, que ele não parece muito interessado em concretizar. A refinaria lhe ficou como uma lembrança traumática desde que Irma foi lá ao seu encontro para pôr fim à relação. As chaminés aparecem à distância na sua deambulação com a filha. No retorno final, ele se atira do alto de uma torre industrial onde costumava trabalhar.
A curta cena de uma saída de fábrica não se relaciona diretamente com a trama melodramática central, mas traz uma informação curiosa a respeito do apoio mútuo entre trabalhadores – o que, aliás, contrasta com a alienação de Aldo. Goriano está sendo ameaçada por expropriações, o povo protesta contra o prefeito e se revolta ao tomar conhecimento de que as terras dos camponeses estão sendo incendiadas. Um grupo de operários cruza o portão da refinaria para se juntar ao protesto. Um chefe os insta a não tomar o lado dos lavradores, que estariam em melhor situação que eles. Ao que um operário responde: “O senhor pode ter razão, mas existe a solidariedade”.
Antonioni voltaria a rondar uma fábrica em O Dilema de uma Vida (Deserto Rosso), de 1964, em que Monica Vitti vive Giuliana, casada com um engenheiro industrial e que se envolve com um consultor recém-chegado à fábrica. O filme se passa durante uma paralisação dos operários, que são vistos já do lado de fora da usina, fazendo piquete e insistindo para que um deles não fure a greve. O transtorno mental de Giuliana e sua dificuldade em ser ouvida retratam não só a incomunicabilidade típica da dramaturgia antonioniana, mas também o mal estar de uma civilização industrial caracterizada por fumaça tóxica e detritos.


Realizado em 1977, Etnocídio – Notas sobre El Mezquital é um documentário-denúncia tradicional, mas eficaz principalmente pela forma de construção, no modelo de notas que Pier Paolo Pasolini usou em seus filmes sobre a Índia e a África. Paul Leduc organizou o filme em verbetes de A a Z, procurando assim cobrir as várias facetas da exploração historicamente sofrida pelos indígenas otomis no México.
Há uma tendência ao miserabilismo nesse tipo de abordagem: a morte sempre presente, terra esturricada, trabalho árduo, vida rústica, analfabetismo, infância desassistida, indigência sanitária, doenças e a sorte dos imigrantes que se aventuram no capitalismo avassalador da Cidade do México ou dos Estados Unidos. Explorados e escravizados desde muito antes da colonização espanhola, os otomis tiveram vários episódios de revolta, razão pela qual passaram a ser chamados de “índios comunistas”. Mais recentemente, tiveram suas terras ocupadas pela burguesia mexicana.
Na penúltima sequência do filme, vemos trabalhadores emergirem da escuridão de uma mina, seguidos por operários saindo de uma instalação fabril. Por efeito da montagem, fica sugerido que se encaminhavam para uma grande manifestação popular, ameaçada pela chegada da polícia.
O longa-metragem britânico Revolução em Dagenham (Made in Dagenham), dirigido por Nigel Cole em 2010, dramatiza a luta real das costureiras de assentos de carros da Ford numa fábrica inglesa em 1968, em busca de paridade salarial com os homens. A saída das operárias para a greve é mostrada duas vezes, sempre do ponto de vista de dentro do galpão. A líder do movimento, Rita O’Grady (Sally Hawkins), convoca as companheiras a se retirarem (“Everybody out!”).
O sucesso da greve e das pressões exercidas pelas mulheres de Dagenham é tido como um fator decisivo para a promulgação do Ato de 1970 que equiparou os salários dos dois gêneros para o mesmo trabalho no Reino Unido. Essa vitória histórica foi acompanhada por outros países, mas a paridade só chegou ao Brasil em 2023, aprovada pelo Congresso em maio e sancionada pelo presidente Lula em julho.
Dois trechos de filmes alemães inseridos por Harun Farocki no seu filme-ensaio Trabalhadores Saem da Fábrica refletem sentidos opostos do gesto operário de sair do local de trabalho para uma ação política. Um filme ficcional da República Democrática Alemã de 1948 mostra operários expulsando a polícia de uma mina com o simples movimento em massa organizado. Farocki narra a cena.
Já um registro documental na Berlim nazista de 1934 ganha colorações inquietantes. Operários e funcionários da Siemens deixam as instalações fabris em marcha para uma manifestação em apoio a Hitler no Dynamo-Halle. Entre os vários grupos, há o bloco dos inválidos de guerra com suas bengalas. Os homens de batas brancas são técnicos de ciência e tecnologia – o que era uma antevisão assustadora, como sublinha Harun Farocki.