FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Assim trabalha a Humanidade

No vasto campo das representações do trabalho no cinema, o motivo da saída de fábrica e de estabelecimentos assemelhados assume importância capital. O portão é a fronteira entre as “duas vidas” do trabalhador, fruto da industrialização que operou uma série de modificações na vida dos indivíduos. Como destaca Gabriel Barcelos em seu projeto CineMovimento, “o dia-a-dia dos operários passa a ser marcado por uma rígida rotina entre a casa, o meio de transporte e o trabalho, com algumas interrupções nos estímulos e diversões da cidade. A lógica de produção da fábrica, com a segmentação do trabalho na linha de produção e as atividades repetidas em cada função, é a representação máxima desta relação temporal, assim como de seus movimentos.”
Vamos observar, neste e nos próximos subcapítulos, como as cenas de fim de turno podem ensejar reflexões sobre as condições laborais e o lugar do trabalho na vida de pessoas reais e de personagens de ficção.
É de estranhar que o ciclo de sinfonias de cidades, que marcou o cinema documentário nos anos 1920, não seja pródigo em cenas de saída de fábrica, uma vez que esse motivo ainda fascinava os ci negrafistas na época. A variação brasileira, São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1929), contém, isto sim, uma entrada de operários. A exceção mais notável foi filmada pelo brasileiro Alberto Cavalcanti no pioneiro Rien que les Heures (Nada além das horas), realizado na França em 1926.
Rien que les Heures retrata “um dia” na vida de Paris, sobretudo em seus extratos sociais mais pobres. Cavalcanti recheou o filme com efeitos de uma poética surrealista e uma pletora de ironias sociais. Vinhetas curtas mostram um carreteiro, lavadeiras, pequenos comerciantes, desempregados, pessoas sem teto, moradores de um asilo. Uma idosa claudicante se arrasta por becos e espaços arruinados. Veem-se detritos, ratos, animais de rua. Uma prostituta, um cafetão, um marinheiro e uma jornaleira são personagens recorrentes que vão se cruzar no módulo final, abertamente dramatizado.
A saída dos empregados, a maioria empurrando suas bicicletas, com destaque para a marcação dos cartões de ponto, vem na parte final, com o encerramento do dia de trabalho na cidade. Mas quando a tarde cai, os namorados se encontram, as diversões se iluminam. Com a noite, enfim, o crime e o comércio sexual ocupam o proscênio.
Metropolis (1927), de Fritz Lang, foi o primeiro grande filme a tratar da relação entre trabalho e capital na era industrial. A superprodução da UFA alemã mobilizou recursos inéditos para dar vida à metrópole futurista (ano de 2026) onde a massa de trabalhadores é escravizada pela elite patronal por meio de máquinas opressoras. A célebre sequência da troca de turno na usina de energia mostra os operários como seres sem vida, olhos voltados para o chão, submetidos a uma ordem que se expressa através da geometria e de uma coreografia que realça o cansaço dos que saem em oposição à marcha mais rápida dos que entram. A associação entre o confinamento fabril e o presídio fica evidente com a presença das grades.
O misto de drama social e ficção científica situa o mundo dos operários nos subterrâneros da cidade e a esfera privilegiada dos empresários-governantes na superfície. A mediação entre os dois espaços é feita pelo filho do magnata, que se apaixona pela jovem Maria, vinda de baixo. Depois que uma mulher-robô, construída à semelhança de Maria, incita a revolta dos escravizados, chega-se à mensagem muito discutida de Metropolis: conciliação entre “cérebro” (a elite) e “mãos” (a força de trabalho) através do “coração” (o amor).
Metropolis pode ser trazido à lembrança de quem vê Chapeleiros, clássico curta-metragem brasileiro de Adrian Cooper, filmado na fábrica de chapéus Cury em 1978. Sem recorrer a qualquer discurso oral, Cooper apenas observa os gestos dos operários na seção de moldagem de chapéus, envolvida permanentemente na densa fumaça dos fornos. Os movimentos maquinais e incessantes dos corpos se assemelham aos do filme de Fritz Lang.
Os homens, muitos de torso nu, suam em bicas, demonstram cansaço, têm as roupas e os corpos sujos, dormem sobre as bancadas após consumirem suas marmitas. Em tudo parecem contradizer a assepsia apontada por Martin Loiperdinger nos primeiros filmes industriais (relembre aqui). Chapeleiros expõe as condições opressivas que então ainda prevaleciam numa fábrica instalada no início do século XX.
O momento de saída dos operários e operárias contrasta fortemente com o ambiente aflitivo do interior. Há duas saídas no filme. A primeira, de apenas 28 segundos, é filmada em frente ao portão, à moda Lumière. Com a particularidade de que a montagem faz jump cuts que dinamizam o movimento e quebram o naturalismo da tomada. As expressões das pessoas variam entre a sisudez e os sorrisos, sendo que um homem se dispõe a retirar o chapéu e admirá-lo como num pequeno merchandising da empresa. A sequência é arrematada por uma panorâmica que segue um homem idoso de chapéu em sua lenta caminhada.
A segunda saída se sucede a um plano da antiga placa de regulamentos draconianos da gerência sobre o comportamento dos trabalhadores. Trata-se de um plano-sequência de cinco minutos, com a câmera posicionada dentro do vestíbulo por onde passam os operários e operárias para depositar suas fichas e ir para casa. Em dado momento, ouve-se o que parece ser uma insatisfação com as filmagens na fábrica em dias seguidos. Seria o cinema outra faceta da exploração capitalista?
Um movimento lateral da câmera para enfocar a caixa de coleta das fichas deixa entrever uma pequena placa alertando “Cuidado! Alta tensão”, o que soa como metáfora de uma potencial eclosão. Lembremos que 1978 foi o ano em que se deflagraram as grandes greves do setor metalúrgico.
Essa última sequência se conclui com algumas bonitas tomadas do exterior da fábrica e sua imponente chaminé, sonorizadas com o que pode ser interpretado como os suspiros de alívio da própria usina ao fim de um dia exaustivo de trabalho.
Trechos dessas duas cenas de Chapeleiros reaparecem no curta-metragem Planeta Fábrica (2019), de Julia Zakia, neta do fundador da fábrica de chapéus Cury. O curta enfoca os últimos vapores da fábrica e sua ocupação por coelhos, prestes a ser demolida.
Produzido pelo casal Obama e vencedor do Oscar de documentário de longa metragem em 2020, Indústria Americana (American Factory) mostra operários estadunidenses se humilhando perante patrões chineses, abrindo mão do poder sindical e sujeitando-se a salários pífios em troca de garantia no emprego. O cenário é a fábrica de vidro para automóveis Fuyao Glass America, aberta em 2015 no lugar de um fábrica GM fechada em 2008 em Dayton, Ohio.
Desfrutando de acesso privilegiado ao chão de fábricas, reuniões internas e celebrações corporativas, nos EUA e na China, os diretores Steven Bognar e Julia Reichert perfazem uma radiografia excepcional do choque de culturas e de modos de vida entre americanos e chineses, designados a trabalharem juntos na planta de Ohio. O filme acompanha também uma visita de operários estadunidenses à Fuyao chinesa, onde testemunharam (alguns supostamente encantados) a retórica da moderna escravidão corporativa made in China.
O filme revela uma nova face da famigerada globalização e anuncia seu recrudescimento com o avanço da automação e do consequente desemprego. Após uma cena chocante de executivos da Fuyao combinando “se livrar” de trabalhadores, o documentário se encerra com uma sequência meramente ilustrativa de operários e operárias deixando as instalações da fábrica. São homens e mulheres, ocidentais e orientais, que em breve não terão mais lugar numa indústria altamente automatizada. Seus rostos, às vezes muito próximos da câmera, parecem encenar uma despedida.
Aos 2’03” deste clipe, a formação de duas colunas em sentidos contrários, indicando uma troca de turno, sugere uma referência à cena de Metropolis que tomamos aqui.