FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Dramaturgia da fábrica

Neste capítulo e seus subcapítulos, examinamos como a fábrica aparece na dramaturgia de filmes de ficção e documentários. As cenas de saída de operários se integram à proposta geral das obras no que diz respeito ao lugar ocupado pela fábrica. Os quatro exemplos reunidos nesta página dão uma amostra da diversidade com que o tema é abordado, situando o estabelecimento fabril como locus de opressão, corrupção, promessa de romance ou mesmo metáfora de cunho psicológico.
Em Ganga Bruta (1933), obra-prima de Humberto Mauro, a fábrica de cimento Portland, então em construção no município de São Gonçalo (RJ), foi um dos cenários principais. Para lá se dirige o engenheiro Marcos Rezende (Durval Bellini) após matar a esposa (Lu Marival) na noite de núpcias ao descobrir que ela não era mais virgem. Mesmo sendo absolvido pela Justiça pelo ato “em defesa da honra”, ele entra em crise de consciência por uma tragédia que considera sua, e não da mulher assassinada a tiros.
Na fictícia Guaraíba, Marcos é seduzido pela fútil e sensual Sônia (Dea Selva), namorada e irmã adotiva do gerente local, Décio (Décio Murilo). É instalado o triângulo amoroso, que vai culminar com Décio tentando matar Marcos, que não consegue salvá-lo quando ele despenca no rio. A história se conclui numa chave amoral com o casamento de Marcos e Sônia.
Ganga Bruta tem um híbrido de influências do realismo poético francês, do expressionismo alemão e da escola soviética. As imagens duras da fábrica contrastam com as cenas eróticas ambientadas em jardins, mas se conjugam com estas pela via simbólica: o cenário industrial serve para Mauro destacar formas fálicas e movimentos de máquinas que sugerem o ato sexual. São indícios também de masculinidade tóxica, tema que atravessa o filme na forma de violência, gestos de posse como tomar a mulher nos braços, brigas corporais e disputas de queda de braço.
Quando corre em busca de Décio para tentar evitar a tragédia final, Sônia entra nos canteiros de obras em movimento oposto ao dos empregados que saem ao final do turno. Por fim, no galpão já vazio, o jogo expressionista de sombras exprime a culpa da moça pelo curso dos acontecimentos. A sequência alterna os planos de Sônia à procura de Décio e deste à procura de Marcos.
São Paulo vivia o boom da indústria automobilística em 1960, momento em que se passa a ação de São Paulo S.A. (Luís Sérgio Person, 1965). O filme tematiza a modernização do país no seu cenário principal, a megalópole arquitetônica moderna povoada por um fluxo incessante de trabalhadores.
Empunhando seu diploma de desenho industrial, Carlos (Walmor Chagas) emprega-se na Volkswagen como inspetor de produção e faz lobby para um amigo corrupto fornecer peças para a montadora. Acaba se tornando sócio da fábrica de autopeças enquanto mantém um relacionamento abusivo com as mulheres de sua vida. Quando chega a um ponto de exaustão, tenta fugir da grande cidade, mas é tragado de volta para suas engrenagens.
São Paulo S.A. é pontuado por cenas documentais de trabalhadores desembarcando na estação de trens, desfiles e operários trabalhando no interior de fábricas. Aos 12’, numa cena curtíssima, se vê a massa de operários deixando as instalações fabris em meio a um mar de fuscas. É mais uma representação de pujança industrial em contraste com o amesquinhamento humano provocado pela corrida rumo ao progresso.
Harun Farocki, em Trabalhadores Saem da Fábrica, selecionou a cena em que Marilyn Monroe termina seu turno numa usina de beneficiamento e empacotamento de peixes em Só a Mulher Peca (Clash By Night, 1952), de Fritz Lang. O namorado está à sua espera, e Farocki destaca o fato de que a vida individual da operária pode então começar. Em um de seus textos, ele apontou a incompatibilidade entre fábricas e estrelas de cinema: “Uma estrela de cinema trabalhando em uma fábrica evoca associações com um conto de fadas em que uma princesa deve trabalhar antes de atingir sua verdadeira vocação”.
No filme de Farocki, à medida que o casal se afasta da fábrica, a narração comenta que a “câmera está feliz demais em segui-los”. Essa interpretação provém da tese de Farocki, para quem o cinema nunca se ocupou muito com o que se passa no interior das fábricas. O operário, segundo ele, só interessa ao cinema quando deixa o ambiente de trabalho.
No entanto, essa curta sequência, antecipada por outra em que vemos a personagem de Marilyn absorta na linha de produção entre muitas outras operárias, será complementada mais adiante, quando ela expressa seu sonho de se casar para não ter que voltar à fábrica, onde se sente “enlatada” como os peixes. Além disso, o diálogo mantido com o namorado sintetiza um tema do filme: as relações entre homens e mulheres, sempre ameaçadas pela possessividade e a violência masculinas. Marilyn é coadjuvante na história principal de Clash By Night, que trata de um adultério cometido pela personagem de Barbara Stanwick ao retornar para sua cidadezinha pesqueira depois de dez anos em Nova York e de uma grande desilusão amorosa.
Há duas cenas de saída de fábrica no drama dinamarquês A Garota da Agulha (Pigen med nålen, 2024), de Magnus von Horn. A primeira marca o início do romance abortado entre a protagonista, a operária Karoline, e seu patrão na fábrica têxtil onde ela trabalha. Karoline é uma pobre mulher na Copenhague de 1919. Dando o marido como morto na I Guerra, despejada da moradia, ela vê esperança na corte do dono da fábrica.
Sua tímida animação se expressa ao fim de um turno de trabalho, quando ela sai junto com as demais costureiras. A cena é uma clara homenagem ao filme dos Lumière, com o plano frontal e distanciado diante dos portões que se abrem e as operárias que se dispersam à direita e à esquerda. Karoline é a única a se dirigir ao centro da imagem, o que sugere destacar sua condição frente às demais operárias. O patrão surge em seguida para dar continuidade ao namoro.
Na segunda cena, dramaticamente oposta, as empregadas são filmadas em plano mais próximo, e Karoline se surpreende ao ver o marido a esperá-la, com uma máscara cobrindo o rosto desfigurado na guerra.
A fábrica, aqui, representa uma oportunidade de afeto e ascensão social, ambas as coisas interditadas a Karoline, cujo destino é sofrer. Ela será enxotada pela pretensa futura sogra, uma baronesa, tentará um aborto e será acolhida por uma mulher que conduz uma agência clandestina de adoções – na verdade, fachada para assassinatos em série de bebês.