FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Assim trabalha a Humanidade
Fábrica e vida privada

As pressões do trabalho sobre a vida privada se refletem de muitas maneiras: na castração do prazer individual, no acúmulo de afazeres de quem tem de cumprir uma dupla jornada, nos efeitos danosos sobre a saúde do corpo, etc. Reúno aqui cinco ilustrações desse quadro, dramatizadas em filmes de estilo e procedências bastante diferentes. Em comum também, uma cena de fim de turno coletivo.
No início dos anos 1960, Bo Widerberg publicou uma série de artigos críticos que clamavam por um “Novo Cinema Sueco” que, opondo-se aos dramas interiores de Ingmar Bergman, cuidasse de questões objetivas da classe trabalhadora. Seu primeiro longa-metragem, O Berço (Barnvagnen), de 1963, com fotografia em preto e branco do também cineasta Jan Troell, era um exemplo do que propunha.
A personagem central é Britt (Inger Taube), jovem operária que mora com os pais e um irmão menor. Ela flerta com vários rapazes, entre eles um intelectual que despreza a vida rica e fútil da família e um cantor de rock em princípio de carreira. Depois de fazer amor com este último no banco traseiro de um carro (“será isso o que chamam de pecado sueco?”), Britt fica grávida e tenta morar com o pai da criança. Mas não custa a desistir da ideia e volta a sair com o intelectual.
No fundo, o que Britt procura é a independência, já que os homens se mostram irresponsáveis ou como meninos mimados. Ela muda de empregos e de casas, levando consigo um lustre que, assim como outros pontos de luz no filme, é uma metáfora de sua busca por autodeterminação. Terminará o filme sozinha, empurrando o carrinho do seu bebê.
Enquanto ainda trabalhava na fábrica, Britt é vista saindo do trabalho com algumas colegas, que a convidam para visitar uma loja de roupas. É a clássica saída para a vida individual, a liberdade, a amizade e o consumo. A montagem veloz e descentrada tem o ritmo de todo o filme, cadenciado pelo jazz e pela agilidade de Godard na Nouvelle Vague. Curiosamente, a cena é localizada entre uma e outra do interior da fábrica, com as moças isoladas e absortas no trabalho com suas máquinas. Ou seja, o lazer é somente um breve interlúdio entre os expedientes na indústria. Também disso Britt tentará se libertar.
Inspirada em um fato da crônica trabalhista, a “comédia burocrática” Beijo 2348/72, de Walter Rogério (1994), se passa em grande parte no interior ou nas partes externas de uma tecelagem no bairro paulista do Brás nos anos 1970. O cenário fabril se presta a diversas peripécias e fantasias dos personagens, envolvendo a ordem dos regulamentos e a desordem provocada pelo amor.
O operário Norival (Chiquinho Brandão em caracterização chapliniana) é paquerado por Claudete (Fernanda Torres), mas acaba se interessando mais por Catarina (Maitê Proença), que é casada com um marido intratável. Quando Claudete surpreende Norival e Catarina num esboço de aproximação entre as máquinas da seção retorcedeira, o ciúme a leva a denunciar os dois, que são demitidos. O restante do filme se ocupa de uma sátira aos procedimentos judiciários, uma vez que Norival abre um processo contra a empresa.
Aqui o trabalho se opõe ao prazer pela ótica do direito conservador, assim como a fidelidade conjugal se opõe aos devaneios do desejo. Duas cenas nos interessam aqui. A primeira, marcadamente cômica, envolve apenas Norival e Catarina deixando o trabalho em seguida ao flagrante. Ele insiste em marcar um encontro com ela, que recusa alegando sua impossibilidade. Na segunda cena, por ocasião de uma saída coletiva, Norival, meses depois de já demitido, volta à porta da fábrica à procura de Claudete e recebe de um ex-colega a notícia de que a moça se casara com o supervisor da fábrica. É a pá de cal nas esperanças de Norival, que então já se tornara um trabalhador precarizado.
A Dupla Jornada (La Doble Jornada, 1976), documentário de Helena Solberg (então se assinando Helena Solberg Ladd), se inicia com um toque de sirene e uma massa de operários se encaminhando para fora de uma fábrica na Argentina. A cena antecipa o assunto central do filme, que são as poucas chances para as mulheres no mundo operário de então. Os trabalhadores que deixam a fábrica são todos homens. Somente numa segunda tomada, mais próxima, aparecem duas mulheres em meio aos muitos operários. Em seguida, outras mulheres, entrevistadas na rua, se queixam da pouca receptividade nas indústrias. Ser operária, naquele momento, era uma conquista feminina importante, pois inseria as mulheres na produção capitalista e assegurava um sentido de liberação.
O documentário foi realizado por um coletivo de oito mulheres intitulado Proyecto Internacional de Cine Femenino S.A e tem fotografia de Affonso Beato. Cobre uma série de questões a respeito das mulheres no trabalho, tanto rural quanto industrial, na Argentina como no México, na Bolívia e na Venezuela. Camponesas, trabalhadoras de minas, operárias e empregadas domésticas se expressam sobre as condições de trabalho, a discriminação sofrida por conta de uma suposta fragilidade feminina e a necessidade de acumular o trabalho fora de casa para ajudar no sustento da família com as tarefas do lar e a criação dos filhos. A dupla jornada de trabalho.
A saída dos operários na abertura do filme estabelece visualmente o que será discutido nas falas das mulheres e da narradora ao longo dos 53 minutos seguintes. Trata-se, portanto, de um uso metonímico do motivo “saída de fábrica”, que ambiciona sintetizar todo um discurso sociológico sobre gênero e mercado de trabalho.
A saída da fábrica é tomada num sentido mais amplo em dois filmes curtos do início da década de 2000. O curta chileno Obreras Saliendo de la Fábrica (2004), de José Luis Torres Leiva, foi filmado nas dependências das Indústrias Laneras Chilenas, em Santiago. O filme se inicia mostrando individualmente quatro trabalhadoras operando suas máquinas ou em curtos momentos de folga nos longos galpões, entre extensos corredores de maquinaria ruidosa. A mais idosa é socorrida pelas demais quando se sente mal no banheiro da fábrica.
Ao final do turno, vemos a clássica saída dos operários, homens e mulheres, numa tomada estendida para além do que a narrativa ficcional requisitaria. A intenção, portanto, é de citar o motivo “saída de fábrica” como exposto pelos irmãos Lumière.
Libertadas da “prisão” fabril, as quatro mulheres usufruem primeiramente o ar livre de uma alameda arborizada. O cenário opressivo da indústria é substituído pelo frescor das copas das árvores, filmadas em contra-plongê, com o sol se infiltrando entre as folhas e o canto dos pássaros no lugar do resfolegar das máquinas. Em seguida, elas fazem um lanche e depois caminham por uma praia deserta, pés decalços na areia e na água, sorvendo com alegria a mudança radical de ambiente.
Não há sequer uma linha de diálogo nesse slow film muito simples, mas que elastece o sentido da saída de fábrica, articulando-a com o tema subjacente da fábrica como prisão.
O filme completo está neste link.
Na França, em 2003, Chloé Hunzinger documentou o encontro de três jovens operários após o expediente noturno numa usina têxtil da região de Vosges. É fim de semana, e eles se dirigem às montanhas para relaxar, divertir-se e conversar sobre suas esperanças, preocupações e desilusões. O média-metragem se intitula simplesmente Sortie d’Usine e quer ser um contracampo do interior da fábrica e de tudo o que ele representa. Reforça, assim, a percepção de que a vida privada começa quando termina o trabalho.
Em 2022 foi lançada a série Ruptura (Severance), sobre um grupo de trabalhadores de escritório que tiveram suas memórias cirurgicamente divididas entre o trabalho e a vida privada. A ficção científica levava ao extremo a cisão entre esses dois mundos, com consequências trágicas e surrealistas.