FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
As saídas se multiplicam
Mitchell & Kenyon

A dupla Sagar Mitchell e James Kenyon realizou uma ampla documentação fílmica do norte da Inglaterra eduardiana no período de 1900 a 1913.
Os showmen George Green e Ralph Pringle os contrataram para filmar eventos de grande movimentação popular, entre os quais as
saídas de fábrica. Nesse caso, o esquema consistia em registrar a debandada dos operários e ao mesmo tempo convocá-los a verem a si mesmos e aos amigos quando o filme estivesse pronto,
geralmente no mesmo dia.
Ao inserir esses pequenos registros no seu conceito de “cinema de atrações”, Tom Gunning ressalta a existência, então, de uma relação direta entre filme e espectadores. “Nunca isso foi tão claro e literal como nesses filmes, quando as pessoas eram filmadas para serem reconhecidas, pelo puro deleite de ver a si mesmas e aos outros”.
A cena de operários deixando os moinhos da Lumb & Co., em Huddersfield, provavelmente em 1900, exemplifica bem o modus operandi dos factory gate films de Mitchell & Kenyon. Homens, mulheres e crianças se encaminham na direção da câmera, estimulados por dois showmen/exibidores a seguirem sempre em frente. Eles são Ralph Pringle (de bastos bigodes e boné) e Loder Lyons (bigode e chapéu), empregados de Thomas Edison e aqui responsáveis pela, digamos, “direção” dentro da cena.
Os adultos se divertem com a situação, mas são as crianças que mais dão trabalho, recusando-se a obedecer às ordens e até tomando leves empurrões dos dois animadores. Outros meninos ficaram postados sobre uma mureta, se regalando com a movimentação.
A versão aqui apresentada foi deoldfied, isto é, restaurada, colorizada e ajustada à velocidade natural, bem como acrescida de uma trilha musical. Consta que Loder Lyons, um ventríloquo, postava-se atrás da tela para produzir efeitos sonoros com sua voz durante as exibições.
Outra filmagem que deixa transparecer seu método é a de um grupo de trabalhadores saindo da mina inglesa de carvão de Pendlebury Colliery, Lancashire, em 1901. As minas de carvão eram então uma das principais indústrias britânicas e tiveram forte presença no documentário das primeiras décadas. Em 1935, Alberto Cavalcanti faria o clássico Coal Face para o General Post Office.
A movimentação é intensa diante da câmera, sendo que alguns mineiros se postaram fixos enquanto os outros passavam à frente deles. A partir de certo ponto, notamos a atuação de um homem de bigode e chapéu que aponta insistentemente para a câmera, instando os trabalhadores a olharem naquela direção e seguirem em frente. Era o showman Albert Sedgwick, que “dirigia” a função dentro do quadro.
Aos 35” destaca-se a figura de um homem negro, coisa rara naquela região e que não deve ser confundida com os rostos sujos de carvão de muitos outros. Quase fechando o cortejo aproxima-se um homem erguendo um cartaz que anuncia espetáculo de imagens animadas sobre a Paixão de Cristo. A propaganda de outra atração das Sedgwick’s Exhibitions constitui um dos exemplos pioneiros de publicidade cultural no cinema.
Um dos primeiros trabalhos da dupla Mitchell & Kenyon foi realizado, ainda em 1900 – último ano da era vitoriana –, no portão da tecelagem Haslams, em Colne, Lancashire. Trata-se de um dos exemplares mais curiosos do gênero na medida em que aos poucos se converte numa grande performance coletiva para a câmera.
O primeiro sinal são as moças saltitantes que passam aos 8” e retornam aos 58” e a 1’35”. Com duas crianças, elas formam um pequeno grupo recorrente que parece estimular a participação lúdica dos demais. A mera saída dos operários e funcionários evolui para uma descabelada encenação com lutas corporais, caça ao chapéu alheio e uma dança hilariante.
Há pessoas em roupas de gala e outras com vestes comuns, o que indica um misto de espontaneidade e representação. Como é comum em tantos outros filmes de porta de fábrica, vê-se alguém distribuindo uma publicação.
O espírito lúdico e as simulações de embates corporais eram constantes nas filmagens dirigidas por Mitchell e Kenyon, como atesta mais esse pequeno curta rodado, também em 1900, no portão da tecelagem Spring Banks, na cidade inglesa de Nelson. A versão é colorizada.
O mesmo não se pode dizer da troca de socos que aparece nessa saída da Parkgate Iron & Steel Co., em Rotherham, 1901. O tapa no chapéu de um homem desencadeia uma briga rude e aparentemente real. A debandada dos operários é precedida por algumas tomadas ligeiramente móveis do pessoal aglomerado à espera do pagamento. Já no início, dois policiais cruzam a cena, primeiro sinal de gravidade na situação. Mais adiante, um homem demonstra irritação com a filmagem e faz um gesto obsceno (o “v. sign”) para a câmera. Ao fim da sequência, vemos Sagar Mitchell e James Kenyon acenando seus lenços de uma das janelas da fábrica.
Bem ao contrário, a dispersão dos empregados da fábrica de calçados Lee Boot em Cork, Irlanda, em 1902, assume ares de evento protocolar na medida em que dois showmen se empenham em organizar a saída do pessoal e um deles (possivelmente Albert Sedgwick) acena para o cinegrafista com o gesto de rodar a manivela. Enquanto alguns deixam a fábrica apressadamente sem dar importância para a filmagem, outros, conscientes da oportunidade, perfilam-se vaidosamente diante da câmera. A presença recorrente de um cachorro em meio às pessoas é uma das marcas frequentes desses primeiros factory gate films.
Também em 1902, Mitchell e Kenyon filmaram a saída de operários e operárias de uma fábrica de têxteis de linho e juta em Barrow-in-Furness. A cena é precedida pela solene caminhada de três homens de capa, cartola e bengala antes que a câmera corrija para o portão da fábrica de onde sairão os empregados. Logo no início vemos um grupo de crianças entrando com as cestas de refeições para os pais. Algumas mulheres cobrem o rosto, ao passo que uma delas sorri e inclina a cabeça para a câmera, sendo logo abordada de maneira ambígua pelo showman.
O filme inclui uma tomada complementar das mulheres se afastando e um belíssimo plano geral da fábrica com suas oito chaminés fumegantes e a passagem de uma charrete de merchandising. A versão apresentada aqui foi também deoldfied.
Uma filmagem rigorosamente frontal do pessoal saindo da tecelagem Alfred Butterworth and Sons, em 1901, propicia visão privilegiada dos corpos e rostos de adultos e crianças que se dispersam um tanto caoticamente. Destacam-se os meninos e meninas levando cestos de refeição para os pais e o vívido interesse da garotada pelo equipamento de filmagem – ou por algo mais que estivesse postado no local para chamar a atenção.
Já na saída de uma fábrica não identificada em Lincoln, em 1900, impressiona a quantidade de crianças participantes, cujo interesse pela câmera contrasta com a relativa indiferença dos adultos, que talvez tenham sido orientados a não olhar para o aparato de filmagem. É digno de nota o menino que, mesmo portando uma bandagem que lhe cobre um olho, se empenha em resgatar um chapéu alheio caído ao chão em meio à multidão que passa. Um toque pitoresco a mais é fornecido pelos varais de roupa no background (pano de fundo, literalmente).