FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Cinema industrial
No Brasil, a cavação

A busca de patrocínios privados ou públicos no Brasil das primeiras décadas do século XX ganhou, ainda nos anos 1920, o apelido pejorativo de cavação. Os produtores e cinegrafistas “cavavam” oportunidades junto a políticos, industriais, comerciantes e fazendeiros para projetar seus poderes e patrimônios e eternizá-los por meios audiovisuais. Mais tarde esse gênero evoluiria para o que hoje chamamos de institucionais.
Paulo Emilio Sales Gomes dividiu o cinema brasileiro dessa época entre o “Berço esplêndido” (filmes sobre belezas naturais) e o “Ritual do poder” (sobre políticos). Faltou talvez acrescentar o “Colosso econômico” para aludir aos documentários destinados a glorificar a produção da indústria e afins.
As fábricas figuravam então entre os signos de prosperidade do país, cobrados por quem aspirava a um cinema mais “moderno”. Na revista Cinearte de 3.2.1932, Adhemar Gonzaga reclamava: “Precisamos apresentar um Brasil bonito, bem vestido, moderno, com os seus arranha-céus e suas fábricas, muitas fábricas... O filme europeu nunca constituiu grande concorrência aos americanos porque não tem esse ‘aspecto’ de país novo e fotogênico que também possuímos”.
Um exemplo modelar de filme industrial com fins publicitários no Brasil daquela época é Sociedade Anonyma Fábrica Votorantim, longa-metragem encomendado pela empresa à Independencia-Film, de Armando (Leal) Pamplona, para a Exposição Internacional do Centenário da Independência, aberta em setembro de 1922 no Rio de Janeiro.
A íntegra do filme pode ser vista neste link.
Na década de 1920, o principal empreendimento da Votorantim era a fábrica têxtil localizada em Sorocaba (SP). Essa é a estrela do filme, que se inicia citando nos intertítulos “o rápido e grandioso desenvolvimento” do conglomerado. Como destaca o geógrafo Flavio Lima em sua tese de doutorado sobre o papel da industrialização na formação socioespacial do país, defendida na Unicamp, “um dos embriões da industrialização no país, a indústria têxtil tem sua origem ligada às fábricas instaladas no século XIX, no Nordeste, onde se concentrava a maioria das plantações de algodão”.
A documentação de Armando Pamplona abrange o trabalho nas várias seções da fábrica e se estende à vila operária, seu teatro, instalações de saúde e a outros empreendimentos, como pedreira, fazenda, lavoura de algodão, moinho, fábrica de cimento, usina elétrica e estrada de ferro.
A proximidade entre a vila operária e a fábrica determinava a dependência quase total dos trabalhadores em relação à empresa. Comércio, lazer, saúde e tudo o mais era administrado pela Votorantim, fechando o círculo da exploração capitalista. Assim funcionavam as grandes indústrias instaladas não só no Brasil, mas em todo o mundo. Quanto a isso, vale conferir o que dizem o britânico Coal Face e o francês Avec le Sang des Autres.
Em três momentos aparece a saída de operários da fábrica têxtil. O que se destaca é a forma randômica com que as pessoas se dispersam, sem a relativa ordem que costuma marcar as saídas em filmes europeus e estadunidenses do período. A descontração está na correria, nas brincadeiras entre elas e na maneira como as crianças desfazem qualquer ideia de coordenação ou método. No segundo trecho, vemos as cestas de refeições distribuídas aos operários na hora do almoço. O terceiro trecho é uma bela panorâmica em plano geral que mostra o prédio da fábrica margeado pela movimentação de saída dos tabalhadores.
Nos fragmentos abaixo, estão incluídas duas curiosidades desse tipo de disposição das figuras humanas. Uma sequência apresenta o primeiro e segundo escalões da empresa em pose, deixando espaço para que saiam do edifício os engenheiros, ajudantes e mestres. No filme, a hierarquia é seguidamente reiterada pela personalização e nomeação dos dirigentes, assim como pela diferença de nível entre as moradias destes e as dos operários.
O último fragmento mostra a saída de alunos do grupo escolar. A disciplina com que as crianças saem do prédio se desfaz tão logo estejam do lado de fora, onde tudo se transforma em recreio.
As grandiosas instalações da Companhia Docas de Santos foram objeto de outro longa-metragem documental, realizado entre 1926 e 1929 por uma companhia produtora não identificada. O maior porto brasileiro de então foi esquadrinhado em seus imensos galpões, maquinaria, guindastes e esteiras rolantes, além dos grandes “paquetes” (navios transatlânticos de luxo) que ali ancoravam.
O filme aborda extensivamente o trabalho de carga das mercadorias e o embarque de passageiros, valendo-se para isso de planos móveis a bordo dos trens que percorrem os cinco quilômetros do cais. As atenções se dirigem, ainda, às pedreiras de Jabaquara, à usina hidrelétrica e à vila operária.
O filme pode ser visto na íntegra aqui.
A cena da saída dos operários da oficina de montagem para o almoço é citada entre as melhores do gênero no cinema silencioso brasileiro. A movimentação em diagonal permite ver muitas crianças em meio aos homens e a forma como alguns tomam a oportunidade para exibir brincadeiras.
Bem mais sóbria é a saída dos empregados dos escritórios das Docas, vista a grande distância e distinguida pela presença de automóveis em frente ao prédio. Se o cortejo de operários parece pitoresco, o de escriturários ganha uma visualidade ordenada e comedida.
Em Belo Horizonte (MG), ainda na década de 1920, o pioneiro realizador Igino Bonfioli colocava seus préstimos a serviço da fábrica de cerâmica Horizontina. O filme de 19 minutos documenta a fabricação de tijolos, o abastecimento da moenda e o transporte de matéria-prima.
A íntegra do curta está disponível neste link.
Os interiores da fábrica são vasculhados pelas câmeras seguindo o refino do barro, a fabricação de telhas e manilhas, o abastecimento das máquinas, o sistema de roldanas e o processo de secagem. Em destaque aparece o trabalho de crianças. Um operário sem parte dos dedos da mão esquerda manuseia uma máquina de corte.
Vê-se ainda uma visita de estudantes de Engenharia ao estabelecimento e, por fim, a chegada de populares a uma loja para examinar os produtos à venda. A saída dos operários é extremamente ordeira, com todos, à exceção de um, se dirigindo para a esquerda (a direita do quadro), o que indica uma prévia orientação dos responsáveis pela filmagem.
Em 1932, a empresa do mesmo Igino Bonfioli realizou Feira Industrial e Agrícola de Belo Horizonte. Uma parte dessa documentação encomendada para a grande exposição pública, ainda silenciosa, foi dedicada à Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira. Nela veem-se as instalações da fábrica, o trabalho nas diversas dependências, as casas dos operários e a igreja própria da usina.
A sequência da saída de “mais de quatrocentos operários” inicia-se com a costumeira fumaça da sirene anunciando o fim de um turno e foi filmada nos moldes Lumière: a câmera fixa diante do portão que se abre para a saída dos homens, quase todos portando algum tipo de chapéu. Todos têm os olhos voltados para a câmera e alguns acenam com os braços. A sequência se estende com uma tomada ligeiramente móvel dos trabalhadores se afastando sobre uma linha de trem ao lado da estação Siderúrgica.
Mais um exemplo eloquente de cavação é o documentário Uberlândia, Cidade Menina, produzido pela Guarany Film em 1941. O jornal Correio de Uberlândia atuou como captador de recursos junto à Prefeitura da cidade, à Associação Comercial e Industrial e ao Rotary Clube. No crédito principal lê-se “Organizado sob a direção de Emilio Sirkin”. A narração, repleta de adjetivos pomposos, descreve a cidade “belíssima, culta e progressista”.
O filme completo pode ser visto neste link.
Vemos a prefeitura, a delegacia, outros prédios e logradouros públicos, famílias e jovens fazendo o footing, a igreja matriz ainda em construção, o Cine-teatro Uberlândia exibindo O Fantasma Esperança (Julien Duvivier, 1939), a estação ferroviária, serviços de abastecimento, a empresa telefônica, dependências esportivas, o clube da elite local, o cemitério e aspectos da natureza circundante. Uma sequência mais longa que as demais enfoca uma reunião do Rotary Clube, onde se pode ver uma bandeira nazista entre várias outras.
A cavação de recursos justifica a apresentação elogiosa de um escritório de advocacia, duas alfaiatarias (“expoente da elegância masculina” e “a tesoura mágica de Uberlândia”), uma marmoaria e uma indústria de charque. Em pouco mais de dois minutos, as câmeras revelam os trabalhos na Fábrica de Móveis Freitas, provavelmente um dos maiores patrocinadores. É onde consta a saída dos operários, assim anunciada pelo locutor: “Após um dia de intenso trabalho, a hora da boia”. Homens e meninos deixam o galpão da fábrica à moda Lumière, sendo dois deles em bicicleta.
Compartilho a seguir a sequência completa dos Móveis Freitas, que inclui a oficina de marcenaria, o destaque para o proprietário da empresa e o showroom do mobiliário “de todos os estilos”.
Alguns filmes de cavação transcenderam o mero oportunismo por seus valores documentais e etnográficos. Esse é o caso do clássico No Paiz das Amazonas, que o imigrante português Silvino Santos realizou em 1921 por encomenda do magnata (também português) Joaquim Gonçalves Araújo. O filme, de mais de duas horas de duração, é um amplo painel das atividades econômicas e das belezas naturais dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Destacam-se a extração e beneficiamento de borracha, castanha, fumo e guaraná, além da pesca, da caça e de algumas atividades dos indígenas da região. Inclui uma curta cena de trabalhadores saindo das instalações de uma fábrica de beneficiamento de castanha e de banana-passa.
A íntegra de No Paiz das Amazonas está disponível aqui.
A empresa J.G.Araújo & Co.Ltd., produtora e financiadora do filme, era sua principal beneficiária. A grande escala da documentação de Silvino Santos pretendia fazer jus à ampla gama de setores da indústria e do comércio em que a firma atuava. No Paiz das Amazonas foi atração da Exposição Internacional do Centenário da Independência.
Silvino fizera um estágio na Casa Pathé e nos estúdios dos irmãos Lumière, na França. Não é desprezível a ideia de que tenha se inspirado no filme inaugural do cinematógrafo para incluir a saída de operários e operárias da fábrica. A cena se segue a uma longa sequência de trabalhos nas oficinas, com destaque para as mulheres. Compõe-se de quatro tomadas em aproximação progressiva dos corpos das pessoas, o que realça o senso de narrativa e continuidade da abordagem de Silvino Santos. Na pequena multidão, de plano a plano, as mulheres vão ocupando mais e mais o espaço de tela.
Saltando para um trabalho bem mais recente, encontramos uma aproximação com o cinema industrial no média-metragem Elo Perdido – o Brasil que Pedala (2018), de Renata Falzoni. O documentário aborda a cultura da bicicleta no Brasil e como esse meio de transporte vem se impondo cada vez mais nas cidades. São apresentados vários exemplos de ciclismo: lazer, trabalho ou simples mobilidade urbana. Uma sequência, filmada em Joinville (SC), expõe a bicicleta como veículo preferido dos trabalhadores da cidade.
Nesse ponto, o filme de cunho antropológico se avizinha do cinema industrial ao privilegiar o movimento dos operários que saem da Fundição Tupy no lombo de suas bicicletas. É informado que a empresa multinacional estimula o uso das bykes, o que parece ser muito bem aceito pelo operariado em suas pedaladas pelas ruas.