FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Dramaturgia da fábrica
Portões da convivialidade

Em época de lutas trabalhistas, o portão da fábrica é local de panfletagens, convocações, manifestações e possíveis conflitos. De maneira geral, porém, é a divisa entre dois mundos:
o do trabalho/coletividade/ordem/eficiência e
o do lazer/individualidade/desejo/relaxamento.
No dia a dia, é um ponto de encontro e convergência de interesses. Eventualmente, é o lugar onde operários e operárias são esperados por seus parentes, amigos ou admiradores que não trabalham na fábrica. Várias formas de convivialidade se desenrolam ali, como exemplificam as cenas dos filmes aqui abordados.
O fim de turno como momento de sociabilidade, quando a saída da fábrica propicia o encontro entre trabalhadores que operam em distintos setores, ocupa uma sequência de Garotas do ABC, o painel operário criado por Carlos Reichenbach e o corroteirista Fernando Bonassi em 2003.
Era o primeiro ano do governo Lula, e o filme se reporta a 1980, quando os metalúrgicos do ABC paulista fizeram história. Esse contexto, porém, nem sequer tangencia a trama multiplot em torno de um grupo de operárias de uma indústria têxtil e um bando de neonazistas que perseguem nordestinos. O filme acabou sendo um resumo do projeto original de um conjunto de seis filmes sobre o trabalho e o tempo livre das tecelãs.
Reichenbach explicou: "Na sua gênese, o intuito desse projeto era dar sequência ao mergulho pessoal no meu imaginário a respeito do universo feminino submetido à brutalização social da periferia de São Paulo; tema que já aparecia esboçado em filmes como Lilian M., Relatório Confidencial (1974), Amor Palavra Prostituta (1980), e melhor desenvolvido em Anjos do Arrabalde (1987)".
Em Garotas do ABC, a locação da fictícia tecelagem Mazini foi a tradicional fábrica de cobertores Tognati, então desativada. A personagem central é Aurélia (Michelle Valle), fascinada por homens musculosos como Arnold Schwarzenegger (o filme tinha como título de trabalho "Aurélia Schwarzenega") e que se apaixona por um dos neonazistas, toxicamente obcecado por ela.
À hora da saída, enquanto caminham rumo a seus pontos de ônibus, Aurélia e algumas colegas combinam as atividades de lazer e expressam o acolhimento de uma novata na tecelagem. As fofocas, gozações e rusgas entre elas dão lugar à prática do companheirismo e da solidariedade.
Função semelhante tem a cena correspondente em Falsa Loura, mais uma costela retirada por Reichenbach do seu projeto de série operária. Nesse caso, a protagonista Silmara (Rosane Mulholland) é empregada numa fábrica de filtros e tangencia a prostituição ao embarcar em devaneios românticos ilusórios. Sua beleza e maneira de se "produzir" geram ao mesmo tempo admiração e má reputação entre as colegas.
Quando deixa a fábrica em grupo, logo no inicio do filme, Silmara manifesta seu caráter um tanto arrogante e pessimista. Traços que serão mais tarde compreendidos como uma defesa contra as adversidades de sua condição e a fragilidade de seus sonhos.
A fábrica é o arrimo de Selma Jezková (Björk), imigrante tcheca que protagoniza Dançando no Escuro (Dancer in the Dark), o misto de melodrama e musical heterodoxo criado por Lars von Trier em 2000. Enquanto vai perdendo rapidamente a visão por conta de uma doença hereditária, ela junta dinheiro para pagar a operação que pode livrar seu filho do mesmo destino.
Selma é uma mitômana apaixonada por musicais hollywoodianos – especialmente A Noviça Rebelde –, hábito que vez por outra, impulsionado por algum ritmo sonoro, transforma seu cotidiano cinzento numa cena de canto e dança imaginária. Ao ter suas economias roubadas por um policial inescrupuloso (figuração de uma América oportunista e impiedosa), ela é levada a matá-lo, é presa e condenada à forca. Sem maiores escrúpulos, o filme acumula pequenos suspenses e organiza os elementos para uma caminhada excruciante até o destino final da pobre Selma Jezková.
Em quatro momentos distintos, vemos Selma, sua amiga Kathy (Catherine Deneuve) e os demais trabalhadores saírem da fábrica ao final do turno de trabalho. Von Trier dá um uso duplo a esse mote: para passar informações sobre a evolução do estado de Selma e como um refrão para delinear a comovente relação dela com Jeff (Peter Stormare), um caminhoneiro que a corteja, mas que ela carinhosamente rejeita devido a sua condição de quase cega e ao seu empenho único em trabalhar para beneficiar o filho.
A montagem brusca do filme dilui um pouco o caráter coletivo das saídas, mas a movimentação dos demais operários no plano de fundo ou passando à frente dos atores centrais fornece dinâmica às cenas.
Uma crônica, uma série de observações sobre o modo de vida e os desejos mais imediatos de um grupo de personagens. Assim é Corpo Elétrico, primeiro longa-metragem de Marcelo Caetano. As ações giram em torno de Elias (Kelner Macêdo), jovem estilista de uma pequena fábrica de confecções no centro de São Paulo. Belo exemplar de bofe gay, ele é um animal em estado de caça permanente. Embora ocupe o maior tempo de tela, atua mais como catalisador de grupos do que como eixo de uma ação individual e própria. Elias é o homossexual visto não como alguém especial ou transgressor, mas como figura plenamente inserida numa paisagem urbana e proletária, onde cabem também imigrantes, drags e casais hetero.
O cotidiano desprovido de valor dramatúrgico, os encontros de puro desfrute, as conversas sem rumo definido ou utilidade descritiva é que preenchem cada sequência do filme. Uma usina de energia afetiva submetida às regras do capitalismo periférico.
A sequência da saída da fábrica ilustra a pauta básica de Corpo Elétrico: pintar um retrato coletivo em que os corpos se prestam em igual medida ao trabalho, à festa, à interação e ao sexo. Um contraponto aos impulsos de intolerância e conservadorismo vigentes na sociedade brasileira da segunda metade dos anos 2000.
A saída se segue a uma cena de relativa tensão entre os empregados e o patrão a respeito de horário de trabalho, além da passagem pelo controle de roubos. Na caminhada pela rua noturna, os personagens vão sendo adicionados aos poucos e fazendo a conversa circular por vários assuntos, o que exprime um momento de distensão e reapropriação da personalidade e da identidade de cada um/uma, em contraste com a postura constrita da cena no interior da fábrica.