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Assim trabalha a Humanidade

Vozes que vêm das minas

As minas são uma alternativa frequente às fábricas em filmes clássicos que abordam as vicissitudes da classe trabalhadora, especialmente na primeira metade do século XX. O trabalho nas minas, subterrâneas ou não, envolve questões de segurança, insalubridade e exploração capitalista. A saída dos mineiros das galerias ganha um sentido dramático particular, pois representa a passagem da escuridão para a luz e das camadas inferiores (como em Metrópolis) para a superfície.  

O trabalho ganhou uma abordagem poética e experimental no curta Coal Face, o primeiro filme influente da GPO Film Unit, protagonista do movimento do documentário britânico nos anos 1930. O brasileiro Alberto Cavalcanti o dirigiu e criou o tratamento sonoro inovador, mas não aparece nos créditos.

 

Coal Face oferece números e considerações sucintas sobre a economia da mineração de carvão, tida então como a principal indústria da Grã-Bretanha. A narração comenta os procedimentos industriais e os riscos do trabalho nas minas, enquanto as imagens detalham a rotina de um dia laboral. A banda sonora é composta, além da narração, por uma exótica suíte de música (de Benjamin Britten), cantos corais e ruídos.

 

O fim de um turno de trabalho é anunciado por uma aceleração da montagem e do canto, seguida de uma parada súbita. Os mineiros são vistos saindo do poço, depositando seus cartões e dirigindo-se para suas casas. O texto do poeta W.H.Auden recita:

“A vida dos mineiros está atada à mina.

A casa dos mineiros é usualmente propriedade da mina.

A vida da aldeia depende da mina.”

 

As imagens das casas e das fábricas dentro dos mesmos planos deixam clara essa dependência, configurando uma crítica social que vai se somar à denúncia de acidentes com os mineiros. Não deixa de ser uma atitude ousada do produtor John Grierson, uma vez que o filme foi feito para uma agência governamental e patrocinado por uma indústria privada.

As minas de carvão são também o cenário do clássico romance Germinal, de Émile Zola, adaptado três vezes ao cinema (Albert Capellani, 1913; Yves Allégret, 1963; e Claude Berri, 1993). A história de um movimento reivindicatório numa mina do norte da França em meados do século XIX, em plena Revolução Industrial, detalha a exploração capitalista e passa uma visão trágica da revolta dos trabalhadores.

A versão de 1913 é um dos exemplares mais naturalistas e impactantes do cinema silencioso europeu. Embora sem closes nem diálogos transcritos nas cartelas, é uma narrativa magnetizante.  Os conflitos são bem concentrados em poucos personagens: o forasteiro Etienne Lantier (Henry Krauss), que chega ao local e lidera uma greve; o operário exemplar Maheu (Mévisto), que o acolhe em sua casa; a jovem Catherine Maheu (Sylvie), que se disfarça de homem para trabalhar na mina e vive com Etienne um romance clandestino aparentado ao de Riobaldo e Diadorim em Grande Sertão: Veredas; e o abusivo Chaval (Jean Jacquinet), noivo de Catherine e traidor dos companheiros.

Germinal narra uma história dura e complexa. Embora os dirigentes da mina apareçam sempre no luxo e na abundância nos três filmes, os trabalhadores miseráveis não são santificados. Sua revolta é cega e termina em selvageria: fazem um enfrentamento suicida com a polícia, destroem a mina que lhes dá trabalho e surram operários que furavam a greve. Essa primeira adaptação se conclui com um ensaio de conciliação entre as classes, sintetizado no abraço entre Etienne e o engenheiro Négrel, preposto do dono da mina. A cena assemelha-se ao aperto de mão entre o capital e o trabalho em Metrópolis.

Em dois momentos do filme de 1913 vemos operários saindo em grupo de locais de trabalho. No primeiro, ainda em seu emprego anterior numa fábrica, o herói Etienne passa pelo feitor absorto em seu jornal e é repreendido. Sua atitude demonstra insubmissão e antecipa o confronto que o levará a ser demitido. O segundo momento, já nas minas de Montsou, mostra os mineiros deixando a galeria em clara demonstração de descontentamento com a redução nos salários imposta pela direção. É o germe para a greve e a sublevação. A sequência se estende até a primeira aproximação entre Etienne, Maheu e Catherine, esta ainda disfarçada de rapaz. 

Na versão mais recente, de 80 anos depois, Claude Berri seguiu com fidelidade o enredo de Zola, mas sublinhou alguns aspectos políticos, endureceu o realismo da representação e eliminou o entendimento entre as classes. Explicita-se o espectro da prostituição e surgem discussões entre ideais comunistas e anarquistas. Etienne, aqui, já é apresentado como um homem  empenhado na conscientização política dos trabalhadores e na criação de um fundo de greve. Ao mesmo tempo, os operários se dividem sobre a paralisação. Na fúria destrutiva que toma conta dos grevistas, eles matam fura-greves e castram um merceeiro que se recusava a vender fiado às mulheres famintas.

Em dado momento, há uma troca de turno, quando Etienne e Maheu saem das galerias à frente da fileira de mineiros e mineiras. Percebem-se dois objetivos na cena: de um lado, destacar os valores da superprodução afiliada ao chamado cinema de qualidade francês, então estimulado por um programa do governo Mitterand em prol de filmes que exaltassem a história e a cultura da França; de outro, Berri usa essa caminhada para estabelecer o vínculo de amizade que começava a unir o operário e o ativista. Uma amizade que terminará em tragédia.

As condições de trabalho numa mina de zinco no Novo México (EUA), nos anos 1950, são o elemento detonador de uma greve em O Sal da Terra (Salt of the Earth, 1954), de Herbert J. Biberman, um clássico do cinema social estadunidense. Produzido pelo Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Minas e Fundições, e baseado em eventos reais, o filme faz uma mescla de elementos do neorrealismo italiano, da estética de Eisenstein, do cinema politicamente engajado e do melodrama mexicano.

 

Numa das primeiras cenas, vemos Ramón Quintero (Juan Chacon, um dos líderes da greve real incorporados ao elenco não profissional) ser exposto ao risco de um acidente dentro da mina. Em seguida, ele e um grupo de mineiros deixa a galeria e vai ao feitor reivindicar segurança no trabalho. São recebidos com negativas e ironias, perfazendo assim um primeiro confronto de muitos que virão com a direção da empresa e as forças policiais.

 

O Sal da Terra consagrou-se por abraçar várias reivindicações que na época soavam revolucionárias. As mulheres dos mineiros se mobilizam para participar da luta, cobrando saneamento na vila operária, substituindo os homens nos piquetes e exigindo igualdade de direitos. Ramón, apesar da liderança que exerce entre os companheiros, não aceita o protagonismo de sua mulher, Esperanza (Rosalra Revueltas). Além do machismo entre os trabalhadores, o filme denuncia a discriminação dos mineiros de origem mexicana em relação aos “anglos” (estadunidenses), que ganhavam melhor, tinham mais segurança e atuavam como fura-greves.

 

O filme teve sua produção e comercialização cercadas de ameaças do famigerado Comitê de Atividades Anti-americanas, que já havia prendido o diretor, o roteirista Michael Wilson e o produtor Paul Jarrico sob acusação de simpatia pelo comunismo. A atriz Rosalra Revueltas viria a ser deportada dos EUA. O Sal da Terra é considerado o único filme a figurar na lista negra do macarthismo.   

Matewan – A Luta Final (Matewan), de John Sayles (1987), reconta uma história real de luta entre trabalhadores e jagunços da Stone Mountain Coal Company na West Virginia (EUA) de 1920. Os mineiros eram explorados nos salários e na cobrança de tudo o que eram obrigados a comprar da própria companhia. Estimulados por um sindicalista que chega de fora (Chris Cooper), decidem formar um sindicato e iniciar uma greve. A empresa reage despejando os trabalhadores de suas casas, o que resulta na chamada Batalha de Matewan, em que dez pessoas morreram.

 

O filme se estrutura parte como épico operário, parte como melodrama. Há vilões bem característicos e heróis bem definidos, entre estes o chefe de polícia local e um garoto que prega a verdade em sermões na igreja. Duas questões são centrais no argumento: o racismo e a xenofobia que grassava entre os obreiros; e uma discussão sobre a conveniência de os mineiros pegarem em armas, opção desencorajada pelo sindicalista, mas que se mostra imprescindível no fim das contas. A dramaturgia tipicamente estadunidense conduz o filme a um desfecho na linha dos faroestes.

 

Embora Matewan trate de luta, a cena que aqui nos interessa vem logo em seguida aos créditos iniciais e serve apenas para apresentar o contexto da mina de carvão. Os mineiros saem de uma das galerias e caminham, ainda sorridentes, mas sob a vigilância dos guardas armados da empresa. Essas imagens são intercaladas com outras em que são introduzidos alguns personagens importantes, enquanto o narrador resume a situação e uma voz feminina entoa a balada Fire in the Hole, composta por John Sayles e Mason Daring. A canção evoca as mortes ocorridas no interior das minas e clama pela formação do sindicato em benefício dos que ainda virão. 

Coal Face
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